Nada lhe era pelas noites ou pelos
dias, apenas as palavras viradas para um adentro, um lá muito fundo
adentro e baixo, onde aconteciam tubarões e madrugadas, vulcões e
unhas roídas. Os seus diários mais deviam ser chamados noitários,
pelas horas, pelas palavras, pelas zonas obscuras que emergiam entre
as linhas deles. Ou então certidões de óbito muito adiantadas.
Pouco mais sabia do que da morte e o sangue. O olhar era turvo, os
cabelos desleixados caíam sobre os olhos e era aí que as mãos se
levantavam num espavento inconformado, os olhos piscavam como
lanternas fracas no nevoeiro. Ela, sentada perante as páginas
brancas, perante o vazio que dela exigia mais e mais. A página
branca era não um convite, mas uma imperiosa ordem de vazamento.
Tudo nela era ela, espiral centrípeta, golo que engole o próprio
sangue, o cuspe, submersa num gosto salgado de mar reduzido em
fervuras sucessivas, amargo e denso.
A Chávena de Humanidade
O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.
El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.
Kakuzo Okakura
domingo, 30 de setembro de 2012
sábado, 29 de setembro de 2012
pedras como amêndoas
há em ti qualquer coisa que não se
segura. qualquer coisa frágil que pende como um candeeiro enorme, e
ameaça cair em cima das almas distraídas a contemplar a beleza com
que te trabalhas. nada cultuas que não leve ao êxtase da ternura,
talvez uma vontade antiga de ser avô e calar o choro de um bebé, ou
ouvir um pássaro e saber o que ele festeja ou anseia. tens pedras como amêndoas
para olhar às tardes, e nada nem ninguém te afasta dos odores de um
jardim cheio de grilos. és nas noites um pirilampo que, no ciclo do
que lhe é essencial, alumia porções de ar, folhas ou aranhas. arrastas pela terra preta palavras compostadas, feitas em líquido
fresco ou pasta, gotículas de voz que encostam às ervas, e se
escondem como bichos na barriga das pedras para saltar às nossas
mãos e corações quando as tocamos.
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
Ch'ien
É mais pela flor que te revelas início.Ch'ien em nós foi decisão certa,
inspiração tua, semente de ti; assim por todos os dias e noites a criação
nos respira, dentro e fora, sístole e diástole do verbo. Ainda durante a
noite o nobre cria e recria a palavra amassada da matéria onírica que é
a mátria aonde regressamos. Não me elevas pelas costas da vida, pela
baixa da cidade, mas pela frente do belo, pelas lombas das conchas, pelo
caminho da reverência ao ínfimo, a farinha de que somos feitos pão
levedado na madrugada do verão para desjejuar as almas, maná dos tempos
que nos vêem passar os versos e as batidas, os espasmos do esterno, a
emoção desventrada pela beleza exposta sem escrúpulo, nua, desgarrada e
nossa.
canción del guerrero
No engaño los caminos por donde discurre la
voz del tiempo. No sueño con palabras grandes, esdrújulos pensamientos.
No me toma la vida en un metro brillante y nuevo. Mi paso es el del
gusano, hecho a su medida, para su sustento. Bello para el creador; a
ojos del ignorante, feo. No huyo por la cascada para esconder mi sombra
en un agujero: soy la sombra, el lado oscuro, los surcos sucios entre
los dedos. Huelo a tierra, a agua, al fuego que calienta en invierno.
Camino descalzo y desnudo por los cerros. No transacciono, no busco oro,
lentejuela, cetro. En la hacienda siembro como esclavo, sólo yo sé que no tengo
dueño.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
talking to an angel
desata-se a tempestade. pássaros que te habitaram fingem que é outono e migram; olham para mim, dizem que mudei as estações... olho em volta e procuro os restos das asas, as penas almofadadas do queixo encostado no peito. calo, deixo setembro tomar conta. ele é que sabe de luzes em descida, de bolotas e folhas que estouram como granadas para nutrir a terra em março. quis ouvir-te mas temos os relógios descompassados, falas em janeiro e oiço-te em agosto, venho pela praia do riso e tu tomas conta da montanha branca, agora tinta de saliva, líquido esquecido entre os lábios secos de manhã. quem quis ser anjo? não eu, I wasn't talking to an angel, so sorry I wasn't talking like an angel... qual anjo, qual música, qual adeus, qual silêncio a não ser o da entrega, o café de manhã, a janela onde pintar, a escrita, a enchente, a beleza, o gesto que acolheu os olhos, os braços abertos até à entorse dos seios, a memória.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
somos
Somos pelo que caminhamos entre as ondas, pelo que de nós surge no meio
da tempestade, náufragos, corpos vivos e salgados na beira da praia.
Somos porque sei como olhas o mar à janela, e nele eu me mostro para ti
uma incógnita. Uma pergunta cuja resposta és tu próprio. Somos por entre
as correntes, somos em essência a aprendizagem após o ciclone que nos
abalou, que mostrou as nossas fraquezas, essas que aceitamos para amar
como na rosa aceitamos os espinhos que a protegem. Somos porque há em
nós o poder de os deixar cair e tornar-se uma rosa mais simples, doce,
dadivosa. Somos porque todo o soldado volta para casa e sabe que no
frenesim da batalha tudo é confuso, e por isso é preciso viver em paz e
fazer o que é devido. Somos porque entre nós houve nuvens e pássaros e
horas simples e corpos abraçados por horas, suores, lábios,
líquidos mornos onde nos deixamos embalar. Somos porque para aceder à
montanha branca é preciso esfolar os joelhos, as mãos, os pés, que se
tornarão no mais precioso de nós, na dor que prove o nosso esforço e o
direito ao paraíso ao chegar ao cimo. Somos porque o caminho certo é
sempre o mais difícil
hombre en el cerro
Entre los ojos de mi hombre se
yergue una verdad.
Mi hombre no merece el
destierro, sino el alma. Cada mañana se levanta y en el eje de su
voz proyecta soles y lluvias que limpien el aire viciado.
Mi hombre es simple. Sabe que
el viento es la sombra del agua. Disculpa a la lluvia por ser
mensajera, a la nieve por ser blanca.
Mi hombre es sabio. No busca:
su unicornio lo encuentra. Cuando lo cabalga, la tierra se apresura y
brota yerbas y limos que ablandan su senda.
Mi hombre tiene dos manos. Una
para la belleza, otra para el ánimo. A veces, los juegos del agua lo
tientan. Pero él no es ganancia, no es pescado.
Mi hombre sube a los cerros con
el paso breve y la mirada baja. Nunca los astros lo han deslumbrado.
Cuando el sol afloja, osa mirar a lo cercano. Quizá una flor, quizá la arena que ha pisado.
Mi hombre regresa y trae
centeno. No entiende de molienda, ni sabe de campo. Pero conoce el
valor de cada grano.
pelos campos impensados
pelos dedos da terra sulcada a rítmicas
braçadas, pelas poeirentas tardes ao pé do mar e as estradas, pelos
sonhos e as florestas atravessadas, pelas cicatrizes que a infância
confere como dote para a vida adulta, pelas insónias também plenas
de oxigénios, pelos coutos rodeados para evitar os
epicentros da fraqueza, pelas lagoas engolidas no peito que se tornam
poço de palavras. pelos campos ainda impensados, implantados,
insubordinados aos cantos de sereia, pelos ares que não esperam o
vento porque o sabem breve e inconstante. por este agora bordado com
flores, cores e palavras.
engenho
pareces-te com as pedras milenares:
passam-te ao lado batizados ventos de mudança e tu sorris e
permaneces: sabes que os ventos não vêm do sul ou do norte, mas da
dança do sol e as águas. e sabes mais. sabes que os moinhos
obedecem ao mesmo engenho: querem pão. pareces com os calhaus dos
rios: correm-te pelas costas as águas claras das torrentes, nelas
deslizas, corpo rombo pelos anos caminhados, por entre as ervas e as
algas, e as mãos das mulheres que lavam a roupa.
poesia
ela é o caminho da verdade revelada. a estrada da realidade última da criação, a génese onde
tudo é possível ainda, longe desta estrada quotidiana que os nossos
corpos atravessam a custo. a vigília que comanda este sonho
obscuro dos ossos e músculos, pedras e dejetos. todo aquele que a
habita vê pelos seus olhos, e assim, para ele tudo é mais intenso: a mentira tem os olhos mais escuros, a mesquinhez deixa a
pele pegajosa e densa. mas também a verdade resplandece como uma
esmeralda, a simplicidade é uma religião, a beleza o pão de cada
dia.
quintal
é assim que os dias se passam na
nossa casa. alguns deles, no barulho das panelas escondo o silêncio
teu enquanto crias uma palavra nova. hoje, por exemplo, fui abrir uma
janela e lá tinhas afixado um beijo d'ob ra. não que me incomode. a
poesia tapa-me o sol dos olhos e assim posso sentir a palavra e o
camélio do quintal. não fosse a tua pegada, estaria agora a franzir
os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a poesia viva.
molho
chamo-te pela espiral que te mantém
sentado sobre as termas, sobre os túneis iniciáticos, horta
de framboesas, quinta da regaleira, devagar lanças a brisa na
palma da tua mão e uma bola de sabão é palavra sossegada que cai
na minha boca; assim me ofereces o orvalho e a geada e os ventos do
sul atados num molho como se fossem ervas simples; assim me inicias
nos segredos dos ocos teus; assim te me apareces em forma de
gato sagrado, ou de cavaleiro ou de águia ou de barco,
calmo, ao sabor das ondas navegado. não temas pelos nomes dos deuses
futuros, sou pajé na aldeia dos teus trilhos, sou mercúrio, sou
xangô e é quando pronuncias o luar ou a espuma do mar que te
compreendo além do âmago e te abraço.
mundo
eu sei que não pertencemos a este
mundo, por isso pertencer-te me é mais próprio que pisar o chão ou
enterrar os dedos na terra para sentir que continuo viva e posso
desfolhar as flores à procura da tua resposta afoita. um dia o sol
passou por trás da lua e tu disseste: que nada me é mais perto do
que tu; e tomaste-me a mão e nela pousaste o sol e a lua, e eram os
dois tanto calor e tanto frio que só pude lançá-los ao voo e
torná-los uma gaivota que no verão acode à tua janela e vigia o
teu olhar sobre o mar, ao longe.
procurava
tanto te procurava, que às noites
enveredava pelo bosque a que pertenço e sussurrava o teu nome nos
buracos dos grilos; da minha boca descaíam flores e folhas e
rebentos que outros viajantes tomavam como suas, confusos que estavam
de me encontrar assim, perdida à memória do teu nome,
perguntando-te por senhas aos bichos, sentando-me nas pontes para ver
se passavas no rio igual a uma folha no outono; barulhos estranhos
soavam às minhas costas, virava-me eram as armadilhas de Adão à
caça do seu sustento; eu ouvia-te e julgava-te o lobo e fugia pelo
monte acima até à cimeira e dali gritava e era uma águia no
estômago a bicar a fome de ti.
canto
É o canto dos círculos das colheitas,
o canto do que acreditamos, que me passeia pelos ouvidos interiores;
o canto dos peixes vermelhos e azuis no mar esverdeado; o do melro de
manhã cedo antes do pão; o canto que nos torna uma flor única, um
cisne negro em toda a extensão do símbolo, um lótus sem
contorções, um enxame de pirilampos na êxtase da procura, uma
nuvem lilás que se aproxima e se revela feita em mariposas gigantes
que voam entre nós e nos tocam com o pó simples das suas asas.
mãos
as tuas mãos foram feitas para acompanhar
os astros. são feitas da matéria dos tempos antigos: formaram-se a
custo de rochas, ventos e feitiços. são feitas do cheiro da chuva,
transparentes como o sal que se mistura aos elementos puros. vencem porque não lutam: imprimem. não tiram: são. sobem
pelas tardes das cores até ao fôlego empenhado de um violoncelo. balançam nas tardes à varande e te descobrem limpo, próprio,
contundente como um livro. as tuas mãos são a última das águas,
por isso taças. são cálices para o descanso das verdades
emergentes, caminho translúcido, líquido dúctil e quente, vinho. as tuas mãos são para ser bebidas, rápidas como um riso, rotundas
como o cerne.
rédeas
a forma em que o teu corpo toma as
rédeas, se expande e retoma em mim a tua sorte, onde te sou jardim e
te me desfazes em sementes de papoila ou cravo; a forma em que te
rego à tarde como uma ponte translúcida num dia de chuva e tu és a
poça onde me espelho e reconheço do mesmo além de ti; a forma em
que o pescoço teu é um baobab ou uma sequoia ou um carvalho onde
aninham seres mitológicos, um canto à habitação primigénia, o
invólucro de um vazio onde sou Alice, caio-te pelo dentro das vozes
e és frasco que diz bebe-me. e bebo porque quero conhecer as tuas
estâncias, os teus becos interiores, espelhos, enigmas e equações
irresolutas; a forma em que te revelas lúcido como uma taça de
cristal, talhado por mãos que tratam de prata e diamantes negros; a
forma em que o poder das fontes te faz queda, vale e foz do verbo
feito aquém; a forma em que és a língua do tao e lambuzas na
corrente nossa para resgatar peixes cheios de palavras.
agosto
nas tardes de agosto, eu caminhava em
direção ao que havias de ser. saltava-te pela montanha dentro e
trazia-te uma onça perdida como um pintainho. soube ler-te os pés
carregados, e compreendi que de caminho ao mar, tu escrevias pegadas
para as ondas aprenderem a poesia. nunca trocamos prendas; o sol era
alto e chegava para acalentar os corpos. eu era um entardecer de
lilás para laranja doce, e tu eras nuvem e saltavas em altura sobre
mim, amante.
praia efluvial
era a praia efluvial, o bico das ondas
nos bicos dos seios e dos pássaros longos como dias sem pão.
deste-me os anjos caídos todos, para eu os socorrer, de nós.
juntamos areias movediças onde ficar presos à poesia. tu desmaiavas
de sol e eu contava-te os cabelos. éramos, e os olhos dos outros
eram um misto de tela e partitura, nós truncados como um epitáfio.
dizíamos: lua cheia, e um pardal saltava da tua boca ao meu ninho de
águia, porque éramos fortes, e os dias eram largos.
belo
és belo, e de tão belo entras-me pelo poro entalado. fruto que tira sede, alma minha à revelia do que sou,
cravo bem temperado, chuva que me chove pelos ombros magros, neve a
derreter pelos braços, falas-me pelos cotovelos da ria, não te
cales, não te cales que a vida é um pano gasto e a tua voz é o nardo. deixa-me estar assim, ao teu colo, esquecida das palavras
bravas, longe do abismo das pedras e as migalhas, segura, abrigada de ti, belo, e de tão belo, fogo.
não somos titãs
não somos titãs,
fugimos de uma terra submersa pelos nossos próprios pecados; assim
nos estendemos pelos continentes, como nuvens ou ventos, ou pó do
deserto. mas também como praga de lagosta emergemos às praias, aos
vales pelos corações feitos em calhaus rolados, e no nosso idioma
de patas e antenas, dormimos num frenesim de branco e vermelho,
engolindo borboletas no pescoço, plâncton por entre as coxas, algas
nos ventres macios. e descemos.
dragão
eu vi o céu pelos teus olhos, uma
noite. dentro de ti era escuro, e cheio de constelações e
hemisférios virgens. eras habitado por escalas próprias, notas
brancas, negras, perfumado em colcheias que te escoavam por entre os
dentes de manhã. sentava-me ao teu lado e ao fim do dia, eu, era os
poros teus. não tinha visto nada assim, tão constelado. eras
Hércules atirando à cabeça do dragão. eras Perseu à procura de
Pégaso. eras de outra galáxia, eras Andrómeda. de repente, eras o
dragão a engolir Hércules, Perseu, Andrómeda e os poros da Lua que
eu tinha ganho com o teu jeito. eras tu a engolir-te nos meus poros,
que eram teus.
barqueiro
dividida nos canais por onde me
escorres de vida atropelada, és o borbotão desaguado mãos
adivinhadas, criadoras, leme do barco rabelo pelos canaviais que
emergem na foz. apresentas-te como um cuidador de cavalos, silente e
corajoso. não é pelo fogo que se vence o mundo, dizes. como deus ex
machina sentas e defines o rumo, nada te contém nem te empurra, a não ser o
vento e a água. sento atrás de ti e fecho os olhos. o barco a
cortar a água, dos remos descaem pingas do teu corpo calado. sinto-te respirar. este barco é o último, o rio já é quase mar, e
as aves passam por nós como se não fôssemos.
menos é mais
acordo e as palavras são o caminho de
migalhas para regressar à casa térrea, ao quintal; arejo os lençóis
e o cheiro dos teus sonhos emerge em palavras que saltam pela janela
e se misturam com a poalha húmida que hoje envolve a paisagem:
andorinhas. acordo e falta-me o cheiro da manteiga derretida ao
unísono, o crepitar dos corpos unívocos na fome de ingravidez que
nos une, a precisão da fugida ao mato do que somos dentro, os laços
afastados do chão, as asas atadas ao tempo. acordo e volto a ti e
sorrio porque os afazeres calmos são o princípio da vida, são o
abaixo do nosso acima, e volta e meia mergulhamos na cama das
palavras a partilhar sussurros de manteiga e cravo.
anisotropia
verbo, ponto anterior ao início do tudo, demiurgo dúctil como um bambu, precisão no ausente, vazio de
onde nasce o movimento, mestre da matéria escura, reflexo dos corpos
celestes, floco anisótropo, silêncio floral no ikebana, em tudo te
apresentas e celebras, em tudo te tornas epifania, emerso dos cabelos
escuros das sereias distraídas, vácuo no alimento, invisível
protetor dos astros e dos sonhos, constelação secreta, mistério
volátil como os cílios de uma deusa que, escondida, passa as tardes
calmas debruçada no tear das línguas que não falas.
tu
sobra-me o corpo, os braços, os
espaços. falta-me o fôlego para te seguir o lume forte, queimas-me
a retina a ponto de caramelo, tu. deita-me água na fervura do sul,
que os ossos, os músculos com que transito o mundo já não servem. tento uma espiral derviche para te atingir nessa verdade
transdimensional onde os nossos corpos celestiais se fundam e
eclodam em palavras ora macias ora contundentes como o mar dos
orixás. tu, sou desfeita de cristais sagrados quando me falas. tu,
abres-me sem limite até à entorse da emoção mais entalada. reconheço-me em ti, assumo-te, de assumir, de somar, de sumo, de
sumaúma. tu, água benta, saras os poros azedos, entupidos por
lembranças secas. tu, antídoto de cobra silenciosa,
remédio de tempo em suspensão, tu.
aguador
aguador antigo, transportas a torrente
da fonte; nela metes o braço até ao esterno para parir as verdades
escondidas aos leigos. tu, as formas frondosas em que te manifestas. nunca dantes foram transitados
os caminhos que o além do humano toma em ti, a tua mão desmesurada
no derrame que te torna vale arvorado, cascata de nomes e rumos
impossíveis, essa caminhada nas curvas da linguagem, nas falésias
do olho nu onde debruças o teu canto.
arara
abeirada ao cheiro que deixa o teu
pescoço torrado pelo sol das dunas, sigo os teus passos, farejo-te
neste bosque de engenhos alucinados. não pares, não, que é a tua
corrida por entre os cipós mecanizados que te faz mergulhar em mim,
te torna mais belo ainda, mais próximo de uma escultura de ébano
com vida própria, uma estação propícia à êxtase. paro e fecho
os olhos, assim posso ver-te íntegro, dos olhos da arara que te
canta sinto os teus pés húmidos a desbravar o caminho, já sou o
bosque que te amorna, te adorna, entorna a magia dos espaços virgens
sobre os teus cabelos trançados em missangas, não fujas, estou à
tua volta, em ti, sou tu, na tua voz
território do ambíguo
celebrar o território do ambíguo como
os cílios o fazem sem palavras. os anjos festejam a visão do aquém,
esta escola cercada por caixilhos em jeito de músculos e ossos, a
relatividade, a impressão quântica apreendida em palavras
absorvidas pelos bicos dos olhos. quem tem asas não precisa de ter
os pés na terra ou levantar o pó das estradas. assim foi sempre, os
deuses garantiram. no entanto, talvez hoje, nós, queiramos inventar
um alfabeto sem tempo nem espaço. e os anjos, feitas as contas do
futuro nascido dos nossos nadas, não serão mais para aqui chamados.
mulher nua
uma mulher nua é uma declaração de
paz assinada nas redondezas do corpo. uma
mulher nua é um seguro contra a fraude, chega ao pé de nós e não
há como negar os seus ombros, porque dela depende o ventre cheio que
nos traz ao mundo. uma mulher nua e madura é uma oferenda de mornas
à beira-mar que encanta as ondas porque as cores do mar lhe
pertencem por natura. não toma de empréstimo os ventos, não
precisa: o sol modula o homem que dela se aproxima, e assim tudo
volta ao seu lugar enquanto as praias trocam areias de oceano a
oceano.
take a reset
nua que nem virada do avesso, dormente,
tocada pelos bicos leves da relva, envolvida no cheiro húmido da
terra preta no jardim adiado, abrem-se as mãos e dedo a dedo o dorso
toca o orvalho. o dia é outro, o mundo outro, amanhã ja foi e hoje
é um dia sem passado, como se nada fosse, como aquela moça de
benedetti a programar uma amnésia para caminhar pela vida sem
mochila. take a rest, ou melhor: take a reset.
a importância da maré
perguntar às sombras pelos ecos do
sol que já se pôs, eis o drama. no fundo, tudo depende do olhar.
fartamo-nos de procurar no entulho dos desejos despejados mas nada
sacia a vorágine da matéria escura de que somos feitos,
insatisfeitos. nós, o sofrimento, a necessidade da porta aberta ao
que se encontra além da massa de ossos e músculos que habitamos. a
dor como lembrança da matéria, a arte como salto quântico. o sábio
aceita o sentido e rema rio abaixo. conhece a importância da maré. tudo
é igual sem ele ou com ele, e no entanto tudo muda a sua presença
invisível.
continuidad de los para qués
convocarte
para que me sacies el hambre de
los labios
abiertos para que te mire con
ojos de pez
adiestrado para abrir su boca
en melodía
callada para no importunar la
sinfonía de tus manos
lentas para no quebrar la
porcelana de mis sueños
pospuestos para ceder el paso a
tu ánimo
áspero para que no te lancinen
los envites del pasado
olvidado para que no te duelan
los tobillos al desandar los tiempos
idos para dejar lugar a dudas
gritos preguntas con espuelas
clavadas en el pozo de mi
lengua
concebida única exclusivamente
para
convocarte
urge
frisar os modos: belo no homem é a
maneira como cresce, como urge, esse quê de caçador polido, a vida
a agir em nome próprio através dos corpos, uma flor que cresce na
direção dela folha a folha, um livro amado linha a linha. um sopro
leve após um dia polvilhado de coisas simples, um riso de canela,
uma leitura fresca, um copo simples. tudo o que já foi é
renunciável quando os corpos dão as horas. tudo menos os limiares
que assumem perfis míticos na hora de alimentar as ânsias mornas,
demoradamente regadas por atos e palavras que confluem no cesto da
roupa, na noite.
homem
o que encanta num homem é o rebento, a
decisão com que abre um livro decidido e lentamente deita uma página
sobre outra como se todas fossem filhas numa noite de trovoada. a
decisão de esquecer o abrupto e festejar as incertezas que adubam os
amores, caminhar sobre as horas como criança ao pé coxinho,
brincalhão, atento ao chão que pisa. um livro sabe esperar seu
turno na prateleira, a vida tem urgências e mistérios decifráveis
a quatro mãos. homem que ama sabe que cada página tem seu lugar, que
a noite tem respostas improváveis, que os olhos por vezes são
vencidos pelos sonhos.
ela livro
livro para ser possuído. livro:
livre, para nunca ser possuída, só procurada, diz ela do além das
coxas, da fronteira dos lábios, o espaço limpo à volta, essa bola
de sabão, leve, de leveza. e de levar. não, antes: deixe. deixe ela
caminhar no silêncio, mulher é passagem, alta-o-fogo, meandro que
evita o choque. mas ele... ele: olhos, mãos. início, força,
sentido. o que não foi mas poderá, formulação da hipótese,
gérmen, intuito, primeira direção de uma pupila que procura. caça.
casa. calma, à tarde. evoluir para mão morna, dedo que já não
vinca a página, mas saliva iniciática, verbo pronto a mergulhar nas
águas dela, salto, envolvência, lançar o hálito até atingir a
sereia e embalar o frémito submarino, tão frio, o fundo, tão
escuro, o antes.
chocolates perdidos
mesquinho foi uma vez o olho que poisou
no ombro da memória como um pássaro poisa no fio do telefone sem
saber o que por ele passa: sonhos contados, despedidas prontas,
correrias, nascenças, frutos, descrenças, risos desatados. mas foi
uma vez. talvez duas. mulher é caixa de chocolates escondidos, luta
pelo efémero, cheiro sem corpo. fazer crescer os chocolates
perdidos, isso é mulher. livro para cheirar a novo, longe de quem
vinca os cantos. é preciso lavar as mãos, limpar as sombras,
acorrentar os humores. nada do corpo, apenas um jeito, qualquer coisa
que passou e deixou o perfume das horas: laranjas, caminho, o
trânsito, uma canção antiga que sabe a novo.
Cosmoagonia
Quem sabe se eram, tinham, sabiam.
Quem sabe ainda os deuses não
tinham nascido para lhes dar nome, sempre com atraso, eles à espera,
convocados para uma ceifa nos tempos em que ainda não havia cereais.
Quem sabe o que acontece aos
primeiros que chegam, a vida ainda não era e quando é, é para se
viver, talvez quando o tempo fosse inventado viessem outros para
escrever, outros de mãos moles e ideias calejadas, revistas, tomadas
da memória do que nunca foi escrito porque o tempo e o espaço não
eram ainda possíveis nem necessários, quem sabe.
Quem sabe um dia já era tudo
nascido e a mulher inventou-se para ser silêncio porque os gritos
dos partos nunca foram belos.
Quem sabe depois ela disse que
sim e queria dizer que não, ou não sabia ou queria era só dizer,
porque dizer era estar, ser ou parecer, uma cópula de sintagmas que
lhe devolvesse a nascença roubada, lhe levasse a dor condenada.
Quem sabe ela tinha sido antes
uma coisa pousada por acaso, uma vontade vaga que de tanto anoitecer
se tornou muda e de tão muda branca, e de tão branca lua ou luz de
empréstimo, ou guia de escuridões que tudo dá no mesmo.
Quem sabe houve também uma
outra coisa lançada de um passado eterno, uma noção de princípio
que não foi, um sempre em frente inverso e infinito, um berço
pronto para o embalo do relâmpago ao nascer.
Quem sabe não queria tornar-se
ele mas que diabos estava na hora e os deuses com atraso como sempre,
quem sabe daí a urgência, a decisão, o caminho aberto, o riso, e
ainda a mão que rebenta dentre o nada e toca a pele branca, muda,
lua.
Quem sabe por isso os deuses
nunca mais chegavam e tiveram que inventar os nuncas e o sempre,
criar o tempo e o sol porque era preciso comer qualquer coisa
enquanto isso e trabalhar para comer e descansar para trabalhar, e o
raio dos deuses que não apareciam, pouca vergonha.
Quem sabe foi preciso descansar
e até morrer para deixar de esperar o que nunca tinha sido.
Quem sabe por isso a única
cópula possível abandonou os sintagmas e brotou da necessidade e o
que há-de ser de nós.
adeus
a fresta é o que foi e o que estava por ser. escoam as águas ainda, até o
tempo sua nos interstícios das horas, nada que não caiba num cabaz para
partir em direção ao futuro. também entre os dedos escorrem alguns
rescaldos do vazio, roupas usadas, uma panela gasta em cozinhar água com
sal. não soubeste ficar pelos contornos, quiseste o tudo, o âmago do
fruto proibido, mas sem responder à pergunta do cão cérbero. cuidado, os
deuses castigam duramente os ladrões de febres e silêncios. não perdoam
a cobardia. nada vai te pertencer mais longe dos teus dedos, ou talvez
então alguma palavra minha ainda ecoe um dia neles e se enfie entre os
papéis velhos, ou nos teus joelhos e te faça acordar do pesadelo que
escolheste.
hortelã
É assim o nosso jardim. As vestes servem para cobrir as flores nas horas
de mais sol, enquanto nós nos amamos à sombra da mangueira. Por vezes
aparecem para nos visitar pessoas amigas com boas intenções. Elas trazem
coisas imprestáveis como cadeiras, pratos, candeeiros que ficam para
ali deitados a ganhar ferrugem. Quando chegam, e quando se vão embora,
as pessoas amigas beijam-nos, porque assim ajudam. Elas não sabem que à
noite há os teus olhos e Sírio, há os nossos pés e mãos, há as
vontades. Não sabem que de dia, caminhamos por entre as árvores e
apreendemos coisas necessárias à vida do jardim, como o riso das folhas,
o cheiro do pau de canela ou o verde da hortelã. É coisa séria, o
verde da hortelã.
perdidos
Dentro de ti são as horas sem tempo. Quanto brio foi preciso para
desbravar o Éden? Quantas Evas sentaram ao pé de Adão? Cada deus
distribui-se pelos campo como bem entende, nós cochilamos entre as ervas
o sono da palhinha, do escaravelho, da formiga que nos sobe pelos
braços. Somos barco e não sabemos onde termina a proa e começa a popa, e
nem somos chamados a saber, mas a gozar o sermos sem fronteira no
contato do mar e suas criaturas silentes. Passo-me e repasso-me da
cabeça aos pés meus e não sei em que ponto tu és eu e eu sou tu, a
ilusão de voltar à fonte universal, o desejo, a esperança de voltar a um
nós que esperou por séculos ou milénios, porque ambos andamos perdidos, e
na forma deste amor sem tempo regressamos ao que fomos antes da maçã e o
esquecimento.
senha
Dizem que há um paraíso onde as terras se tornam ausentes de nós para
nos evocar o gozo da língua viva, um paraíso que te nasce nos pés
descalços pela orla do silêncio onde em pé esperas, nas conchas das
mãos-praia onde te aporto com cheiro a algas e sal das ossadas nossas
gastas de tanto riso, um jardim onde crescem livres amores-imperfeitos
como o nosso que acorda de manhã vontade de cinzel para se aparar
arestas e liquens e tristezas. Dizem que há uma floresta mágica e só nós
temos a senha, só nós sabemos da porta, só nós somos aceites pelos
elementares das águas e as pedras.
dias
É assim que os dias se passam na nossa casa. Alguns deles, no barulho
das panelas escondo o silêncio teu enquanto crias uma palavra nova.
Hoje, por exemplo, fui abrir uma janela e lá tinhas afixado um beijo
d'obra. Não que me incomode. A poesia tapa-me o sol dos olhos e assim
posso sentir a palavra e o camélio do quintal. Não fosse a tua pegada,
estaria agora a franzir os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a
poesia viva.
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