Ser feliz
é a arte de borrar os limites da memória
e resgatar as cores de entre a negrura.
Aprende-se,
nada tem a ver com os factos;
é um calor que eleva os tornozelos
e se enreda nas mãos que abraçam instantes.
É um caminho
uma ponte, uma congosta, uma praia
onde estendemos as conquistas
sem darmos pela proximidade do mar,
pela maré que sobe,
a onda que nos gela os pés
arrastando conquistas, roupas, sorrisos
tudo o que julgávamos ser,
o que pensávamos sólido e foi volátil.
É um ato consciente de inconsciência,
recusar-se a contemplar o desejado,
uma insurgência da memória,
uma deserção de cobardes que nos purga
e nos deixa a fragrância do futuro.
É irreconciliar-se com o leito da desgraça
do que somos, não do que vivemos,
do que desejamos, não do que já temos.
É virar as costas ao lamento
e entoar o canto do ar que nos açoita o rosto;
é também precisar de uma berma, um jardim
crescido à margem dos caminhos quotidianos,
um pé descalço na altura certa,
uma certa memória, um certo esquecimento,
uma toalha para secar as águas do passado
e uns dedos ágeis que libertem as correias
que nos atam às malas que arrastamos.
Ser feliz é a arte de se demorar no efémero,
de esticar o tempo nos lábios da memória,
de estender o riso no tempo intercalado,
é o ofício de entrançar os fios do sangue
até lograr um tapiz inesquecível, porque
a felicidade habita os intervalos,
nasce enquanto toca a campainha,
cai-nos do bolso no recreio e sara
a memória e os desejos,
as mãos gretadas, os gritos, os medos.
O riso é uma pétala um segundo antes de cair,
um instante de beleza derradeira,
por isso as virgens colhem rosas
e as mães se demoram nas carícias.
Para sorrir é preciso ver,
é preciso compreender que os versos se desfloram
como as palavras caem do céu nas madrugadas
e assim de manhã os risos povoam a geada
para fazerem crescer a erva dos serões.
In Livro do Riso e a Memória, inédito.
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