levantar-se é acender as velas da esperança
por cada cabeça que roda há sete que acordam como dragões antigos
nós somos golfinhos a cantar pelos mares do mundo uma música antiga e nebulosa
os tempos não enganam:
somos filhos do desígnio aberto das águas
fluimos em direção ao epicentro do amor sem reservas
as gargantas ecoam numa frequência que acorda os instintos leves
e nós, outrora carnívoros corpos armados em árvore
acordamos para o que estávamos à espera de lembrar
abrimos os olhos para o dejà vu que inventamos a cada segundo
e sonhamos sonhos lúcidos como tochas na caverna
e cantamos em frequências impossíveis que reduzem ao nada
o calor infernal da distância onde embalamos a cegueira
que alimenta os círculos concêntricos da fome e a guerra
A Chávena de Humanidade
O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.
El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.
Kakuzo Okakura
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
nacos
a noite não sabe a noite. caminho pelas costas das
linhas porque o longe hoje é uma utopia. pergunto-me onde estás. em
casa, sim, mas onde estás. em ti? em mim? talvez na casa das palavras
brancas, agora que elas se empilham para nos receber um outro dia cheio
de sol e laranjas. empilho palavras como lenha para a lareira. o inverno
chega e a estrada está cortada. sabemos como esperar. o silêncio é
sagrado, mas cúmplice em presença. na ausência, o silêncio é como o gelo
onde uma mãe ursa procura o filhote caído. corta as mãos, afronta,
serve o coração em nacos.
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
qué pena que tus ojos
hoje lembrei-me que tenho um sonho
passa um mocho calado
passa uma música de lenço branco
hoje lembrei-me que está inverno
cada folha desafia o solo
cada fruto tem seu tempo
hoje lembrei-me que está noite
faz quase lento
faz quase aguado
hoje lembrei-me que sou de prata
somos pouco sem moeda
somos nada sem trocados
passa um mocho calado
passa uma música de lenço branco
qué pena que tus ojos
qué pena que tus manos
hoje lembrei-me que está inverno
cada folha desafia o solo
cada fruto tem seu tempo
qué pena que tus ojos
qué pena que tus dedos
hoje lembrei-me que está noite
faz quase lento
faz quase aguado
qué pena que tus ojos
qué pena que tus labios
hoje lembrei-me que sou de prata
somos pouco sem moeda
somos nada sem trocados
qué pena que tus ojos
qué pena que tus pasos
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
transparente
amanheço quieta, silenciosa como uma cobra inofensiva.
sem dentes, cilíndrica e mole. escorregadia como os sonhos ao acordar.
transparente ao olho do dia. o único som é o crepitar do sol por trás da
montanha; respiro. não: és tu quem respira. não saberia dizer. são
tantos poros. acordo à música dos ossos e as correntes que te habitam. é
verão, a luz ainda não enfureceu. há um canto onde posso ficar
morna, acolhida como cão vadio ou peregrina, no teu encosto. no teu
encalço adormecido, no do teu sonho, no dos lábios fechados, no das
narinas que levemente lembram que estás vivo.
acácia
pensaste na espera
como um brilho no olho
de quem descobre a carta que falta ao jogo
não na esperança estripada
de quem espera sem saber
por quê
por quem
por quando
pensaste que o guizo dos meus dentes
era perene como as folhas das acácias
pensaste bem
esqueceste pensar a latitude e longitude
dos meus ramos
pensaste nos tempos em que as folhas
cresciam sem medida
esqueceste regar as raízes em silêncio
pensaste na cortiça mole e perfumada
como os lençóis secos ao sol
esqueceste o regador das noites mornas
pensaste nas flores que precedem os frutos
cortaste-as para as levar num vaso
para uma mesa grande
de uma casa grande
com janelas grandes
perto de um mar grande
foi assim que
perto de um mar grande
numa mesa grande
de uma casa grande
com janelas grandes
os frutos não aconteceram
como um brilho no olho
de quem descobre a carta que falta ao jogo
não na esperança estripada
de quem espera sem saber
por quê
por quem
por quando
pensaste que o guizo dos meus dentes
era perene como as folhas das acácias
pensaste bem
esqueceste pensar a latitude e longitude
dos meus ramos
pensaste nos tempos em que as folhas
cresciam sem medida
esqueceste regar as raízes em silêncio
pensaste na cortiça mole e perfumada
como os lençóis secos ao sol
esqueceste o regador das noites mornas
pensaste nas flores que precedem os frutos
cortaste-as para as levar num vaso
para uma mesa grande
de uma casa grande
com janelas grandes
perto de um mar grande
foi assim que
perto de um mar grande
numa mesa grande
de uma casa grande
com janelas grandes
os frutos não aconteceram
húmus II
o teu torso de pão. os teus braços. a noite. as horas
em que te sigo os passos do coração brando. o jeito mole em que
respiras. a quietude pelas horas caladas. a casca onde assentam as
palavras que nos esperam. o sonho de regressar ao pão da manhã. os olhos
quase fechados por onde escoam os desejos. o quase adormecer da escrita
nos dedos entrelaçados. o já, o acordar no embalo de um cheiro próximo
ao húmus.
Carta a um poeta
Sabes, poeta,
Por
vezes eu fico a pensar e ocorrem-me as palavras gastas pela rua.
Algumas vezes fico muito triste: vejo nelas os rasgões que outrora lhes
fizemos, vejo as palavras mapeadas de cicatrizes, e as minhas mãos
tremem como as de um carrasco arrependido.
Sabes, poeta, acordo de manhã e acontece uma palavra como "casa" ou "quarto", ou "rua", e todas elas falam de nós. Acontece a palavra "voo" e ela fala de nós. Acontece a palavra "silêncio", e ela fala de nós.
Mas sabes, poeta, cada vez mais fico a pensar nas palavras por gastar. Fico a pensar que "Sena" será para nós uma palavra cheia, como as telas de Redon. Fico a pensar em "voo" e oiço o som das nossas asas a bater antes de o sol sair. Fico a pensar que houve um dia de palavras onde os corpos nem eram chamados a existir, e foi leve. Um dia em que fazia sol, ou chuva, ou sonhos ensolarados numa casa térrea.
Sabes, poeta, a vida é um ciclo de morte e renascença, e é imprescindível lavar as palavras no rio antes de regurgitar o verbo da génese de novo. Não que queira voltar aos dias passados, às palavras escondidas nas pedras da calçada. Ou seguir trilhos mascados, nada disso. Antes quero regressar ao cheiro dos livros na varanda. Sentir que posso sentar ao teu lado, poeta, e abrir um livro numa página qualquer, e ler para ti em voz alta, e sentirmos, falarmos.
Sabes, poeta, acordo de manhã e acontece uma palavra como "casa" ou "quarto", ou "rua", e todas elas falam de nós. Acontece a palavra "voo" e ela fala de nós. Acontece a palavra "silêncio", e ela fala de nós.
Mas sabes, poeta, cada vez mais fico a pensar nas palavras por gastar. Fico a pensar que "Sena" será para nós uma palavra cheia, como as telas de Redon. Fico a pensar em "voo" e oiço o som das nossas asas a bater antes de o sol sair. Fico a pensar que houve um dia de palavras onde os corpos nem eram chamados a existir, e foi leve. Um dia em que fazia sol, ou chuva, ou sonhos ensolarados numa casa térrea.
Sabes, poeta, a vida é um ciclo de morte e renascença, e é imprescindível lavar as palavras no rio antes de regurgitar o verbo da génese de novo. Não que queira voltar aos dias passados, às palavras escondidas nas pedras da calçada. Ou seguir trilhos mascados, nada disso. Antes quero regressar ao cheiro dos livros na varanda. Sentir que posso sentar ao teu lado, poeta, e abrir um livro numa página qualquer, e ler para ti em voz alta, e sentirmos, falarmos.
Sabes, poeta, eu já não tenho varanda, tenho só uma marquise redonda e tenho sonhos
que, como ela, circulares, aspiram a construir qualquer coisa parecida
com a perfeição.
Sabes, poeta, eu já não tenho varanda, mas tenho olhos para olhar para o horizonte.
Sabes, poeta, eu já não tenho varanda, mas tenho olhos para olhar para o horizonte.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
goles
A noite é a queda. Hoje caem faíscas sobre o céu da
minha casa. É a montanha acesa, e o coração. Hoje é amanhã, onde a
beleza que as tuas mãos idealizam há de me tomar o rosto branco. Amanhã é
uma parede e a tua presença longínqua. Amanhã o dia voa em cores pelas
veias da luz, e eu serei uma casa onde os hóspedes te bebem a pequenos
goles, como um chá antigo e exótico, amassado pelas minhas mãos antes da
água.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
tomar tu mano
"Compañera
usted sabe
puede contar conmigo
no hasta dos
o hasta diez
sino contar conmigo"
Hagamos un Trato, Mario Benedetti
usted sabe
puede contar conmigo
no hasta dos
o hasta diez
sino contar conmigo"
Hagamos un Trato, Mario Benedetti
Hoy quiero tomar tu mano.
Mírala bien: me refiero a tu mano.
No me refiero a seguir tu fuerza directriz,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a tener cintura breve o ser tu premio,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a llevarla a mis caderas o a mi pecho,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a que las damas somos primero,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a adornarte las palabras y los hechos,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a que me levantes si tropiezo,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a recoger limosna, a sopesar tu dinero,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a regalarte una pluma para que escribas "te quiero",
sino a tomar tu mano.
No me refiero a que me firmes un libro o me dediques un texto,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a que pruebes mi cocina y digas que está bueno,
sino a tomar tu mano.
No me refiero a esperarte sentada mientras sucede el invierno,
sino a tomar tu mano.
Tomar tu mano
y sentir en ella la frecuencia que vibra en tu aliento.
quando era
quando eu era o vento. aquele dia. aquelas folhas em
bronze entre os olhos que se escondiam. quando eu era o vento, e zunia
os silêncios. e pela boca me saíam borbulhas de tempo onde passeávamos,
como porquinhos-da-índia em rodas ilusórias. quando eu era o vento, e as
borbulhas espocavam, e nunca mais havia passeio de sabão.
domingo, 15 de setembro de 2013
elementos
confío en los elementos.
cada columna es una propuesta de derrumbe.
no insisto; es inútil fingir que no hay suelo.
no lucho; es inútil fingir que se vence.
hace sol o sombra, lluvia o seco:
porto un cuerpo, unas manos, ningún deseo.
cada columna es una propuesta de derrumbe.
no insisto; es inútil fingir que no hay suelo.
no lucho; es inútil fingir que se vence.
hace sol o sombra, lluvia o seco:
porto un cuerpo, unas manos, ningún deseo.
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
goiamum
alma-dia. amanheço à procura do pão para hoje. salto
em altura sobre o rio, sou das águas calmas a mãe segura de seios
grandes e quadris-alicerce. da praia ao sertão e de regresso mimetizada
no mangue. sou uma térmite do dia-a-dia, casa no ar e pés no chão, grão e
fruta para o inverno. sou um goiamum: buraco onde me guardo que protege o
mundo dos meus tenazes. há a bicharia que me faz lembrar que a terra é
boa porque nos aconchega. há o húmus, a minha fé. há a praia ao pé de
nós, um mar que lambe os pés da terra que nos dá de comer.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
aquática IV
Viajo. Sou uma molécula de plâncton a alimentar as
veias da estrada. Acumulo verbos, palavras carentes como bairro-de-lata.
Frentes de coração, dintéis armados em fitas de cores bravas. Conto e
reconto. Luto. Quando a estrada me leva, dou em almadia. Não
contorno os ventos: deixo. Vivo. Consigo. Desconsigo. Nasço.
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
aquática III
Sou aquática. Sei como nadares-me. Também o mar é
bravo, às vezes. Mas eu surfo-me nas ondas da emoção. Assumo o comando
da verdade nua. Batem as águas com o sol. Entre as profundezas frescas e
o céu se levanta um templo de beleza. É o olho do furacão e a calma do
recife. É o compasso da espera, a cadeira de baloiço na varanda, a
noite, os jardins ocultos que esperam passos para ver o fulvo acontecer.
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
aquática II
atravesso-me, antes como rio. como rio nasço à
verdade de esperar por uma margem aonde me desças. aonde embarques numa
almadia que reconduza as águas perdidas. e nela descobrir correntes
novas. profundas. carregadas de palavras e plâncton. como rio surjo do
quase-nada branco de uma rocha ou uma gota de chuva até crescer em
pedras e plantas aquáticas que se elevam para a tua embarcação, protegendo-te de jacarés e quedas.
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
aquática
paira o véu do sono na cabeceira cama. que
tem marcas, nuvens azuis onde os teus sonhos ficaram presos como nas
teias dos índios americanos. é agosto; é noite. tomamos a direção do músculo fulcral ou a do trilho torto. há quem escolha a dor mas nada me detém perante os meus
braços porque sei onde me nascem as raízes, aquáticas, do
nós. nada tem tanta força como o silêncio; nada tem tanta paciência como
o inverno.
escolher
saltar em altura sobre as águas do amor. decidir. escolher o vácuo, o sempre em frente. o tempo. a música. a dança. as almas vivem vidas próprias, mas habitam corpos. há as distâncias, os mares, os rios, as montanhas. a comida. os tempos do sono, as praias. as montanhas, de novo, há tantas. há o kilimandjaro, por exemplo. a encosta onde deslizei uma noite, brilho turquesa ou esmeralda, as águas primígenas, mãe que me brune braços e vontades. as da força, não as do desejo. há caminho por fazer. penso: caminho parece com carinho. por vezes guardo as pedras que me fazem lembrar paisagens. por vezes deito-as fora, e sigo. sempre em frente, ao caminho. ao carinho.
varanda II
Volto à varanda. No rodapé habitam escondidas
palavras que partilhamos um dia. Palavras que talvez fiquem a morrer
aqui, lembradas dos lábios que as proferiram e não são mais. Talvez
palavras que caíram das folhas que manuseávamos como agora cai a noite
húmida sobre a erva lá fora. A última noite, que anuncia um tempo novo.
Oiço os grilos, as rãs. O verão esplêndido vai-se em dias e fogo.
Enquanto isso, passa uma locomotiva que aperta o passo para levantar o
tempo que nos afastou. Ao longe, o choro de uma criança, o latido de um
cão. Gosto de pensar que sabem de nós. Ou então: do vazio. Os animais
entendem de passados. Aqui, nesta varanda, nós fomos nós. Aqui a tarde
era morna e lembrava vozes e músicas. Aqui conjugámos um dia verbos em
presente, e advérbios sem tempo como 'agora' ou 'enquanto'. Sei que as
músicas nunca mais vão tocar assim. As músicas são como as uvas, devem
ser colhidas quando a estação acaba. Como o outono, o longe está para
chegar. Como o dia, está tudo por nascer, por compreender. Como a noite
de hoje na varanda, sei que este é o último poema.
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