Adormeço sempre os olhos do sonho. Nem tento nem desconsigo, é apenas assim como decorrem os sentidos que uso para gerir a vida. Noite é dia, dia é noite, mais verdade a noite do que o dia, e vice-versa. Silêncio é som, e vice-versa. E assim.
Às vezes, no meio de uma conversa qualquer, uma mão ou uma perna minha avança, passa à minha frente, e sou o olhar de uma câmara que será um filme para outros sentirem o que, na verdade, nunca sentiram.
Outras vezes oiço a minha voz atravessar o espaço. Então, umas cordas vogais - que, ao que dizem, habitam dentro de mim - vibram e contagiam o ar à minha volta, vejo ondas empurrando-se e empurrando o ar, invadindo os outros corpos, vivos e mortos, que reagem a esse empurrão e compreendem qualquer coisa que há uns segundo existia apenas dentro de mim, num lugar sem tempo nem espaço que a ciência insiste em chamar pensamento, e que é apenas a teia onde são tecidas mentiras e verdades, ilusões e realidades, crenças, crendices e vaguidades.
Porque a realidade nada mais é que um conjunto de acordos, um molho de inconcreções em que concordamos após descartar noventa por cento do que acontece em nós.
E enquanto a gente luta com as escolhas, a ciência chama de dissociação esse eu que esquece o contrato e não escolhe qual eu é o verdadeiro eu, se tal existe. Esse eu que se recusa à obrigação de escolher, de apontar, de dividir, e é, mais uma vez, escolhido, apontado, dividido: dissociado.