A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Carta a um poeta


Sabes, poeta,

Por vezes eu fico a pensar e ocorrem-me as palavras gastas pela rua. Algumas vezes fico muito triste: vejo nelas os rasgões que outrora lhes fizemos, vejo as palavras mapeadas de cicatrizes, e as minhas mãos tremem como as de um carrasco arrependido.

Sabes, poeta, acordo de manhã e acontece uma palavra como "casa" ou "quarto", ou "rua", e todas elas falam de nós. Acontece a palavra "voo" e ela fala de nós. Acontece a palavra "silêncio", e ela fala de nós.

Mas sabes, poeta, cada vez mais fico a pensar nas palavras por gastar. Fico a pensar que "Sena" será para nós uma palavra cheia, como as telas de Redon. Fico a pensar em "voo" e oiço o som das nossas asas a bater antes de o sol sair. Fico a pensar que houve um dia de palavras onde os corpos nem eram chamados a existir, e foi leve. Um dia em que fazia sol, ou chuva, ou sonhos ensolarados numa casa térrea.

Sabes, poeta, a vida é um ciclo de morte e renascença, e é imprescindível lavar as palavras no rio antes de regurgitar o verbo da génese de novo. Não que queira voltar aos dias passados, às palavras escondidas nas pedras da calçada. Ou seguir trilhos mascados, nada disso. Antes quero regressar ao cheiro dos livros na varanda. Sentir que posso sentar ao teu lado, poeta, e abrir um livro numa página qualquer, e ler para ti em voz alta, e sentirmos, falarmos.

Sabes, poeta, eu já não tenho varanda, tenho só uma marquise redonda e tenho sonhos que, como ela, circulares, aspiram a construir qualquer coisa parecida com a perfeição.

Sabes, poeta, eu já não tenho varanda, mas tenho olhos para olhar para o horizonte.

Sem comentários:

Enviar um comentário