A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

gemas

por trás da raiz da arruda há a intenção dos deuses de enxotar as bruxas. pelo tronco da macieira corre o fluido que nos há de chegar à boca. por trás de cada coisa que tocamos habita o hálito das sereias, a garganta branca da cave onde dormimos o sono das gemas. cada um de nós porta uma água, uma pedra escondida, uma lenta verdade desabrochando em dedos ou artérias. cada um de nós guarda na preciosa caixa do hoje um amanhã em linha com a verdade. ninguém nos precede, nada nos espera. é só puxar do fio e arrancar o motor do esterno adormecido, é só arrastar, só apertar os dentes um segundo e colorir o corpo com o sangue que guardamos, com o sumo das folhas do castanheiro, com o grito dos grãos da romã. é só saltar ao próprio vale, habitar a cozinha dos sonhos, ser-se máquina de moer o café dos pobres, a sopa dos corações ricos, o pão das almas simples: a beleza.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

longe-de-pétala

erva longe-de-pétala, pelo meio, caule abaixo, à contra-mão da seiva, longínquo aos estames, neutro na paisagem, mole na pedra, nitrogénio na terra, nada que se veja. sapador ao fundo do que as palavras nunca, não, não pelo verbo ou apesar dos nomes: cor de quem não tem olhos, cheiro do vácuo, face sem rosto que contempla o transparente, bóia que nomeia o inefável. teimoso como icebergue, mente porque as palavras ficam a caminho, não atingem, são fracas, curtas, cegas, surdas, partículas sem rumo convocadas pelas mãos dele, o pobre, o escoado, o enxuto. o poeta.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

lesmas

entre as janelas e os muros a brisa, a água em dias de chuva: penetrar a matéria inerte. ser-se a posse das coisas. peixe entre multidão coxa de olhares. entre as palavras uma vírgula fugida: levantar-se de súbito e saltar para o mato sem regras. entrar na clandestinidade das imagens ocultas sob a necrópole. cavar-se numa gruta sob o calculado fingimento do timbre. desconversar os sentidos. como inquilinos, ultrapassar a frequência que mexe os ossos. massa orgânica que a custo levantamos contra todos os pesos de todas as leis impostas pelo corpo, contra a gravidade, contra a leveza do que somos, contra o peso da memória, contra o flagelo dos rostos passados, contra tento e maré, contra-mão, contra-acepção assente, contra a grelha do eu. contra nós morder os segundos antes de chegarem e mascá-los, entrar no templo azul não pela porta, mas pelo solo. ser a mina, as mãos na terra dos fonemas, o som dos bichos que mastigam o futuro, as unhas do poço, as lesmas do verbo, a matéria prima dos calhaus e os nomes.

domingo, 27 de janeiro de 2013

poucamente

leilão das vozes, venda dos afetos. queríamos um pano para o pescoço, por isso viramos corda. não foi fácil esquecer janelas, montes. andávamos pelas beiras poucamente vestidos de gente que amava. sentíamos bocas a chamar, mas as muralhas eram altas, os disparos curtos. sabíamos que as semanas são frutos perecíveis, que os pássaros voam longe e com eles levam as mensagens: quando voltam, estão mudados e não lhes conhecemos mais os bicos, as penas. agora é inverno e o sol é uma bolinha ao pé de nós. agora é procurar nas palhas letra, cor que faltou, teia que sobrou, lembrança. taimado colo onde embalar-se cada tarde a cultivar pérolas do serão colorido e calmo, do chá, da varanda, da solidão sonora.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

arquimedes

desvendar os obscuros segredos que cochilam nas cavernas nossas. levantar o pano do espelho projetado até à implosão da mentira final. olhei-te com olhos de estrela. eras pequeno, tão pequeno, que não dei pelo tamanho do teu sonho, pelo contorno enorme do teu olhar. não foram palavras-maresia ou gargantas-rochedo que nos ceifaram os peitos, mas tanta espuma sob o silêncio. dos dois, de tudo. a fuga pensada, calculados os passos do regresso à praia seca, as mãos que seguravam portas e móveis. exaustos como náufragos, fracos como cigarros de enrolar, desfizemo-nos em fibras ao mínimo solavanco. só era preciso um cobertor, mas fomos velhos na hora do presente, escassos como pérolas, duros como riscos na falésia. as estrelas afinam o brilho quando olhamos no escuro ao lado. mas nós: cegos, deserdados das nossas próprias coroas, pão e fruta, água pelos vasos comunicantes, princípio de arquimedes, dança das marés, jogo do vazio, luta e sombra apaziguada.


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

tomar conta

morremos. nós morremos. tanto apêndice para tão pouca coisa. tanto vácuo para o que realmente importa. o dia é sempre, o agora. a guerra. a nossa, o espelho dos nossos atos de granada na mão ou espingarda na boca. levantar-nos de manhã e olharmos para ela, no espelho. para a mentira que um dia descobrimos ser. encenar faz parte, mas só para acreditar no teatro como no ar que respiramos. amanhã não existes e não começaste palavras. não ensaiaste desculpas. não terminaste coisas. amanhã não existes e era alguém que te acenava do outro lado da rua e fingiste não ver. amanhã houve nuvens e era tudo tão belo que perdeste o comboio para o amor ou a fama. amanhã morremos. hoje não existimos. enquanto isso, as coisas comem-nos as papas na língua, na cabeça. está na hora de acordar, levantar-nos, tomar conta.

domingo, 20 de janeiro de 2013

oboés

faz-se tarde e somos oboés à espera de um deus que nos sopre os ossos. sempre uma tecla demorada ou fraca, apressada ou hirta. ontem o céu estava claro e sabíamos de onde vimos. mantemos o olho em frente, a testa erguida, claro. por isso encontramos estrelas entre as ervas. por isso nos chamam as vozes caladas que perfuram a terra para nos acolher na dimensão da verdade. há o sol interno e nós calamos os olhos enquanto todos acreditam no magma, sem perguntas nem estridências. faz-se cedo, ouvimos o chamado do dragão. ainda não fomos nascidos para o afora, ainda não transcendemos as nossas borbulhas, ainda somos pequenos perante o desafio de amar. os dias crescem de novo e somos ramos adormecidos, nem rasto de gomos nos cílios, nos ombros; nem rasto. faz-se o agora e não entendemos a vontade dos deuses, não subimos ao altar, não oferecemos o coração para salvar o outro. faz-se o aqui, e somos longe, dentro, encerrados nas covas do ego.

sábado, 19 de janeiro de 2013

jacob

Acallar la voz del alma pobre. Dejar crecer en las manos el silencio de los días previos al cisne. No hay gesto, rastro, boca entre los sueños de lo que somos. No hay calor, voz o estrella que guíe certero como la honda presencia del desnudo, los pies del corazón descalzo, sucio, descarnado. No hay anillos, no hay tierra, no hay salida. Sólo viento espumoso, salto, entrada a la caja de los truenos, al rescate de la memoria de los pasos, de los tiempos acuosos, de la escalera de jacob en espiral al centro de ingravedad de lo que olvidamos ser.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

calcar

calcar los pies cabos en el polvo del camino. no saltarse ni una piedra. con los ojos, los pies, los dedos. atarse la lengua a las manos como única salida al autoengaño. saltarse las reglas del tres, las pruebas del nueve, caer implacables sobre la verdad del doce, de nuevo el tres, el principio en movimiento. conducirse por la senda de la verdad sin extremis, sin gestos, sin-fonías, sin-lencios. fijar los ojos que no tenemos en la meta que no existe, y correr por los pasillos de cada minuto como si perdiéramos el último grano de maíz, el último aliento, la última gota de sudor, porque nada nos sobra cuando viajamos solos pero con todos, siempre pero hacia el nunca, fuerte pero con el débil.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

estrategia

todo es mentira. la palabra. después, el eco. por eso es urgente callar los verbos heridos. es urgente alejarse de la costra del recuerdo, arrancar los mandilones que penden en los pasillos de lo que fuimos. es urgente dejarse arrastrar por el camión de la basura, ser cartón que fue papel que fue hoja de un árbol, darse la vuelta para siempre, vaciar los bolsillos de la infancia por los milenios de los milenios, desdibujar cada trazo que calcamos en el cuaderno de memorias escondidas, cada esquinita dibujada con los ojos hacia adentro, cada dobladillo, cada bordado. es urgente descoserse las bastillas, cortarse las mangas del lenguaje, desnudar las piernas sin depilar. es urgente evitar los espejos, los intercambios, las clases de baile para la lengua. pero lo más urgente es huir de la estrategia. la estrategia nos sonríe, nos viste, nos arropa los vicios.

sábado, 12 de janeiro de 2013

sabermos

saltarmos com os olhos do berço ao líquido sonoro onde as nossas costas diluem os fardos. aproximar-nos do poço calado que nos habita, nos espera. degrau a degrau pela escada da confiança cega, da verdade calada que nos olha de dentro à espera de a reconhecermos, já e para sempre. deixarmos as impressões digitais no espelho que nos acusa, onde habita um eu sei que se exprime, que nos aguenta o peito, o rumo incerto, um eu que nos alimenta às noites. sabermos sonhar, sabermos viver. sabermos tomar o pulso da verdade por trás de nós próprios e circular pelas vias ventosas da procura. bebermos a água que somos e convocar os outros, os amados, todos.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

peneirar

como um cortinado no verão apenas deixamos passar a luz aprumada para não atrapalhar os dias. agora é noite, agora é calor. é preciso peneirar as vozes, os corações. os passados, que não são dos outros. nem nossos. é preciso tentar o caminho do fluido, sempre. ser-se líquido pelos canos das agendas. é preciso tentar e tentar-se, deixar-se andar, sempre, defrontar a nossa sombria caule adentro nos olhos dos outros, atravessar o sujo pesadelo seiva ou saliva acima para acordar suados mas sem mácula. é preciso entregar-se ao nada, apenas para cair e tomar impulso. é preciso saber voltar para examinar uma pedra ou uma erva, saber sentar, saber sentir, saber-se fraco. é preciso saber perdoar-se, saber encantar-se, saber amar-se.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

bandos

bandos como círculos de reticências a escrever o verso do céu aberto. o curvo rumo do papagaio nas mãos, como se as nuvens ou as aves fossem nossas, virgens saturadas dos sonhos sem idade. olhamo-nos uns nos outros, trepamos a íngreme pergunta da vida, sonhando deslizar pelos jactos das barragens até ao mergulho no manto de uma verdade amniótica, de uma visão celular. amar a ida mais do que o regresso, é o humano, a paixão, a mão de cada dia, o jeito em que cada viagem é o hálito novo, cada dia as narinas abertas ao perfume da troca, da proximidade. é preciso amar os prelúdios como eles amam o refrão. somos tactos, somos fracos, não existe o nós, já percebemos, mas o caminho é tão curto quando a companhia é lírica ou silente, lenta ou franca.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

caçadores

baixo as neves do que havemos de ser estremece qualquer coisa em jeito de erva ou serpente. vejo-te crescer e fragmentar as cores como um caleidoscópio. há sempre um olho, um outro lado, uma espreita. a concavidade em que me insinuo mulher. o osso em que me seguro para te procurar no meio das trevas. os vínculos calados. ou então a distância. gumes como fios de ouro, de outro. é o pescoço e os braços que o rodeiam ou as mãos que o tocam. os dentes que o farejam. somos todos caçadores, afinal de contas. mas às vezes esquecemos perseguir a manhã antes que seja tarde demais. hoje os ventos colam-se aos olhos, hoje é cedo porque ainda não disse adeus e todos os dias são o último dia.

procura

é brusco o jeito em que as lavas se nos tornam veias ao passo que o ar nos enche as vagas de vida. tu tomas banho de sol sostenuto. eu cá prefiro o chá de mi bemol. não modulamos as pressas nem os gestos, sabemos que tudo é mentira quando assomamos à falésia para contemplar o mundo que já não nos enche a não ser como estação. a vida sazonal sente-se em horas passadas a desfazer os milhares de passados que são crosta das vértebras, dos desejos. tudo o que nos contamos é caminho, rolar pela encosta das águas livres é meta, o riso pacientemente procurado é bandeira. existem os acidentes da procura, as quedas dentro dos nossos próprios poços. mas é porque temos água. para além disso, há os corpos, mas eles sabem de nós e não insistem em beber em rios turvos.

domingo, 6 de janeiro de 2013

monção

a casa arrasada. arrastados os móveis da idade infante, os vincos nas portas nada convocam a não ser a náusea do tempo perdido. começar após o ciclone, quando o que foi teto e o que foi chão se confundem no meio da chuva e a lama. andar aos pedaços de nós atrás da vassoura que queima as mãos porque o céu é nosso, o fogo é nosso, o trabalho é nosso. é a vida, dizem com olhos nipónicos os braços calados. é a vida e a morte, diz o coração enxuto, é o que não queremos ser mas não sabemos abandonar, é pescador que sai de manhã e nada sabe do mar que o espera, as vidas por ceifar, o pão de cada ria. assim nada sabemos das fracas vontades com que nos entendemos no meio do nada, as nuvens entre os pulsos latejantes, a insuportável necessidade de amar e ser amados, o insaciável vácuo que nos habita o peito e nos insta a procurar-nos no meio da trovoada, no meio das ruas, no meio das sequelas do monção que nos abala a cada dia.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

chega

chegam as horas em que me deixo encantar pelas barbadas algas da memória. chega o musgo das veredas que povoei sozinha, estourada pela cegueira. chega a coluna vertebral feita em estilhaços de sonho, em olhares agudos sobre as mãos que não sabem mais o que entregar à ira do deus que me comanda. chega a tinta da china derramada sobre o deserto dos afetos, a carregada chuva, a ida da mornura pelas termas do sangue. chega a sábia descida dos canhões secos, doentes de terras desérticas, semeados de monstros antigos, de elfos desenraizados. chega o cúmulo de vozes em grito empilhadas no esterno, chega a vida, chega de estátuas de sal: no céu que resta há caminhos e vales, e há a razão de os deuses nos terem colocado os olhos na face, e não na nuca.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

não gosto

Não gosto de suor. Não gosto de silêncio de mãos entre os corpos, nem de palavras rudes a convocar lembranças de pecado. Não gosto da ignorância, da pacatez no jeito das mãos, do rumo intumescido dos corpos mortos, da rigidez do corpo que anuncia o cíclico, mecânico, inerte. Não gosto do lado humano, do leme das vísceras torpemente envolvidas no manto dos corpos, dos cheiros, dos líquidos, das pastas. Não gosto do olhar em espiral inversa, da auto-complacência, da distância, dos nomes, dos espelhos. Mais do que tudo, não gosto da compulsão à repetição, não sou amiga de freud e não quero ser tua mãe.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

novos

novos entre as folhas do antigo. profundos entre as veias do dragão, entre as águas filtradas pelo ventre da terra que nos acolhe para o melhor trabalho: a faina de cavar a própria cova, de procurar até ao sol interior, através das cavernas da sombra, de tocha nas mãos nuas, calados, sorridentes como um buda ou um poquerista, sujos os pés da lama das paixões esquecidas, à procura do cântaro chinês, da corrente, do sentido, do nagual que nos embala em gritos para rebentar os tímpanos da maia, sujos com cheiro de terra, o prazer da infância, da pesquisa, da árvore por subir, da pedra por tropeçar, da grade por saltar, do buraco por cair. sujos de felicidade e futuro, novos e antigos.