A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

sábado, 13 de outubro de 2012

Intervalos I

Ser feliz
é a arte de borrar os limites da memória
e resgatar as cores de entre a negrura.

Aprende-se,
nada tem a ver com os factos;
é um calor que eleva os tornozelos
e se enreda nas mãos que abraçam instantes.

É um caminho
uma ponte, uma congosta, uma praia
onde estendemos as conquistas
sem darmos pela proximidade do mar,
pela maré que sobe,
a onda que nos gela os pés
arrastando conquistas, roupas, sorrisos
tudo o que julgávamos ser,
o que pensávamos sólido e foi volátil.

É um ato consciente de inconsciência,
recusar-se a contemplar o desejado,
uma insurgência da memória,
uma deserção de cobardes que nos purga
e nos deixa a fragrância do futuro.

É irreconciliar-se com o leito da desgraça
do que somos, não do que vivemos,
do que desejamos, não do que já temos.

É virar as costas ao lamento
e entoar o canto do ar que nos açoita o rosto;
é também precisar de uma berma, um jardim
crescido à margem dos caminhos quotidianos,
um pé descalço na altura certa,
uma certa memória, um certo esquecimento,
uma toalha para secar as águas do passado
e uns dedos ágeis que libertem as correias
que nos atam às malas que arrastamos.

Ser feliz é a arte de se demorar no efémero,
de esticar o tempo nos lábios da memória,
de estender o riso no tempo intercalado,
é o ofício de entrançar os fios do sangue
até lograr um tapiz inesquecível, porque
a felicidade habita os intervalos,
nasce enquanto toca a campainha,
cai-nos do bolso no recreio e sara
a memória e os desejos,
as mãos gretadas, os gritos, os medos.

O riso é uma pétala um segundo antes de cair,
um instante de beleza derradeira,
por isso as virgens colhem rosas
e as mães se demoram nas carícias.

Para sorrir é preciso ver,
é preciso compreender que os versos se desfloram
como as palavras caem do céu nas madrugadas
e assim de manhã os risos povoam a geada
para fazerem crescer a erva dos serões.

In Livro do Riso e a Memória, inédito.

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