A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

varais

pegas-me pelos varais da força de vontade. não me enfio pelas tuas mãos, que a carreira é louca e o fim um poço. pelos dedos atinjo-te nas pulsações, és táctil como abacate ou cortiça brava, justo como o fim do dia, navegado por fumaças como um barco branco a atravessar o pântano; seguras-te nos verbos como ramos porque és povoado por areias movediças, paredes e viagens de ida e volta; acreditas no mundo como um prato porque as noites são frias e a canja quente, e assim deixas-te cair pelo bordo da vida, pelo abismo da promessa, sim, essa água que escoa sem saber para onde. sabes da existência de sóis interiores mas só num canto de ti os encaras, numa cave onde te guardas das estrelas e as fontes, tal é a necessidade de olhar para a luz e não ficar perante ela sozinho, nu e de joelhos. por isso encostas o corpo à árvore da vida, buraco a buraco os teus pés no tronco, mão a mão e é tão fácil seguir-te o rasto pelas veias da palavra, sempre acima, sempre em frente, sempre.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

no corpo tudo são maquinismos

é o voo rasante, as curvas com que das nuvens traz um vento louco, um furacão de folhas, uma torrente de pirilampos sobre os olhos, um reflexo de qualquer coisa viva e à procura no meio da noite que habitamos, corpos feridos, corações tolhidos por línguas afiadas e desejos mortos, seguro-me porque no corpo tudo são maquinismos e mal habito os ossos e os músculos se o sinto por perto; entra-me pelos pulmões como andorinha, agora sinto-o aninhar nas costelas o perigo de renovar votos de letras e cabelos; e olho para trás mas os dias não voltam e os silêncios são telhados prestes a cair sobre os meus ombros, prenuncio clavículas desfeitas em pó de talco, está na hora e rudes vozes que afastaram sóis calam e retomam o cachimbo, os grilos, o caminho de ferro.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

morcegos

são as horas, os temperos. salgas-me as noites porque nelas te entro pelo sono dentro, pela cidade fora somos morcegos a testar os limites do físico, as asas, esses artefactos, essas prisões tão perfeitas, atmosféricas; batizamo-las de chuva ácida e acreditamos que os olhos existem apenas enquanto lembrança da fraqueza com que nos encontramos, assim a cada sonho um degrau na viagem a nenhures que são as mentes nossas, ou então fossem as minhas mãos delicados cogumelos a crescer-te no costado, a florir-te as axilas como se te habitassem de sempre e só neste outono breve, nesta humidade onírica que partilhamos, como se houvesse o espaço requerido para embalar os adeuses que deviam ter sido e regressam porque as contas não foram acertadas ainda; viajamos ao fulcro do desejo por chegar e sonho-te, e os teus cabelos compridos habitam-me a sala branca, chegam apanhados num molho como nos meses são os dias, assim à toa ou bissextos e tão longe dos astros, e é preciso trançar, é preciso pentear para evitar que se tornem cabelos fugazes, cadentes às noites, apenas pensados para proferir desejos e morrer na minha boca, nas minhas mãos que trançam.

domingo, 28 de outubro de 2012

a casa

olhar para cima à procura do pé que foi, da luz que fugiu atrás do horizonte, o hálito e a escada branca, a beleza na estratégia do caracol, as cores verdes ou azuis em que um homem vê o rosto de uma mulher que ama, os corredores, as portas, os tetos que coroam os corpos à noite, os quartos onde apesar da luz acontecem histórias verosímeis, onde as vagas da vida se dissipam como o lusco-fusco, madeixas de sol pelas janelas, madeiras que deixam pegadas nos nossos pés como no fundo dos olhos, das mãos que tocam e não acreditam; e as flores, os lugares, a razão do antigo, os azulejos depositários das mãos tão amadas que é para ficar a viver nelas, a vida que sobe e desce, e volta, a torre sem marfim que sonha dentes brancos, os cabelos compridos que lá foram secos pelo sol na varanda, a água, o murmúrio das estações que passam, tanta terra atrás dos vidros partidos pelo vento, tanto amor em cada canto, tanta beleza para beber, tanto sangue para se ter, tanto olho para ver.

velejar

correm as horas e as folhas como pássaros que nos fogem das mãos, tu és um olho semicerrado que me lança um desafio, eu uma boca aberta a perseguir o vento que ultrapassa os telhados, há quem ria ao nosso lado, há quem nos olhe e nos deixe ser um sonho por um momento, há quem saiba aproveitar o vento e o frio porque a vida é um velejar os dias, encontrar ocos onde rir nas tardes e nas pedras, a vida é um cabelo despenteado e umas sombras na água, uns segundos à espera do vento mais certo, uma imagem que começa num convite espontâneo e termina numa festa sazonal, a vida são nuvens inesperadas numa poça, águas que saltar a caminho do incógnito, um salto de lado a lado da muralha ou uns corpos a espreitar; a vida, sim, é fraca e longa, e guarda nos dias frios os corações mais calorosos, os nossos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

segundo sol

desatamo-nos nas trovoadas, os cúmulos-nimbo espelham as almas inexperientes. tudo o que vence o sono é borbulha e espoca entre um nós que é reconstruível a cada segundo. tudo o que sobe pelas paredes que nos afastam do desejo é simples, concatena memórias e futuro, segura o tempo pelos pulsos, sobe os segundos como degraus feitos em pó, assim nos aproximamos das águas-furtadas ao passado onde se escondem agulhas, almofadas ou fonemas esquecidos, essa bijutaria entrançada nos genes, essa espiral ascendente que nos atrai ao poço de onde fugir, está na hora do bordo de pedra onde segurar as mãos para saltar ao segundo sol de onde viemos, as horas que no fundo saltam dele ao miolo que habitamos sem saber, essa espinha onde incrustamos memórias, pedaços de osso, musgo ou água, tudo numa sopa de emoções para embalar os atos, assim como lenços agitados à toa, sem ninguém para despedir, sozinhos, tão sozinhos.

http://www.youtube.com/watch?v=6PRLjGJRbPk 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

quinze eme

está tanta gente nas ruas. está tudo aberto, até os peitos. está tudo largo e ensolarado como as ruas em lisboa. está tudo franco como um sorriso velho numa tarde de verão. estão as ruas ocupadas com os corpos limpos, as vozes, os jeitos inverosímeis de quem caminha em círculo e nada sabe da constante áurea. está tudo pronto, ocupado, disponível o calor no espaço entre os corpos, os cotovelos, as costas que se juntam, nas ruas. está tudo tão obscuro que está tudo prestes a jacto de vida, a morno verbo onde embalar silêncios, porque os gritos ecoam mas não destroem as pedras dos muros que nos afastam da verdade. está tudo à mostra do sexto sentido, tudo oculto aos olhos simples, tudo calculado para alimentar o monstro sem cara que nos devolve o que somos, o que fomos, as somas do passado que se transformam nesta equação macabra que descansa corpos antigos e camas na rua, como se nada fosse, como se o suor nunca tivesse sido, como se uma árvore acordasse uma manhã louca e resolvesse comer as suas raízes, assim, sem mais, e comer das nuvens, nem que o céu chovesse nitrogénio e pedras.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

uníssono

a luta acontece fora das horas, nas frestas do olhar, nas janelas que se abrem entre as palavras, nas culpas mudas, essas figuras inertes que se transformam em setas ou flores em nós, esses ramos que evoluem para vide e depois pedra, essa montanha que se abre para parir dentes, idiomas, lembranças com cores e cheiros, sonhos crescentes como os rebentos do amor de manhã; é assim nós, tão humanos, um relâmpago o líquido em que nadamos e hoje a noite é bela de tão escura que junta os hálitos e os acordares imprevistos ao uníssono, como uma orquestra de inconsciências nos encontramos por momentos no aquém enquanto os corpos mentem como a escrita e há qualquer coisa como a música que nos convoca para daqui a tudo, sem nós sabermos.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

apesar da cola

somos de novo, e a cada pouco, pelo fio, pelo gume do caminho com que rasgamos o tempo e o espaço, pelas horas que são e já não são. somos fumo, bárbaros pássaros sem bico, aves pelos dias que já não chegam para a desfolhada que nos espera. há a faina e cada folha é um cadáver ou uma matéria prima, ou um asteróide do início, ou uma ave amanhã. tudo se divide infinitamente até ao mais íntimo do osso, onde pensamos residir, respirar, resistir ao assédio da distância perante o outro, onde cada virtude que nos atinge é uma bala que esburaca as costas e dessangra os propósitos, cega, de tanta vontade, assassina. as balizas que nos esperam não contam bolas: assim como no circo da vida, falta nelas a rede, mas não interessa, a vida é sentar sem querer e ficar a olhar e tecer sem fios, quem sabe um dia cresça lá uma teia de aranha onde as borboletas se reproduzam apesar da cola, do silêncio à espera num canto, da proximidade da morte.

degraus do adjetivo

Nada sobrou dos olhos; nada a memória dos gestos, a desolação ou o adeus. Nada me toma já pela cintura da dor, perímetro hoje voltado para o mar, os afetos. Trabalho as horas como palavras, trepo pelos degraus positivos do adjetivo, pelas conjugações mestras das horas, o tapiz do tempo e os seus atos que é tapete à porta da casa do amor. Há uma janela de onde olho para o presente, uma abertura que já foi e cresceu para porta, e para arcada no terreiro do paço ou porta de Alcalá, Arco do Triunfo. Ofereço a cara e os olhos pois os deuses foram sempre exigentes de nós, tanto como generosos. Enxergo uma praia ou um jardim, algas ou flores, festa de Iemanjá, um mar que é floresta e receptáculo de gratidão ou memória, pão ou peixes, água ou fogo, vento ou sede, tanta sede.

domingo, 21 de outubro de 2012

teoria da distribuição da água

tortura ou tontura, viagens de ida e volta na ordem de trabalhos, fausto e a descida, o regresso ao luminoso ponto onde os corpos de luz se tocam, se compreendem, se sabem mais perto do previsto e ainda bem, pois tudo o que é caminho é cheio de pedra e erva, água e sol, encosta e árvore; há os desertos, claro, mas o que seriam eles sem a savana; não fosse a distribuição da água tudo pareceria igual, e no entanto a terra é toda a mesma e o ar deixa-se beber em ambos e todos, dentro, fora, sístole, diástole, yin, yang, primavera, inverno, céu, inferno.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

peixes líricos

vamos pelo pé da rocha, pela mão da árvore, pelos olhos húmidos como almofadas nas noites de verão, vamos assim pelas horas azuis do amanhecer no norte, pela cor-de-laranja do adeus que dissemos ontem e hoje guardamos numa caixa para deitar ao mar junto com as palavras ainda mornas, assim, para alimentar os peixes da memória, aqueles peixes líricos que andaram connosco pelas ruas sem ninguém saber que por cima das nossas cabeças eram marés e agora é um céu aberto, limpo, aonde ir buscar nuvens ou cheiros, planetas ou aves, gente vinda do futuro que seremos, purificados na lama das paixões, apenas anjos perdidos a meio do caminho, as asas cheias de memórias e músicas embarradas, tudo para deitar fora até encontrar o esqueleto do tempo, o caroço do código nuclear, o que já foi e só está à espera de chegar ao ponto de partida para nascer à morte, ao ser.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

as covas caladas

partir as pernas da confiança como um soldado romano as de um crucificado até os ossos do coração se ouvirem em estalo ao pé da estrada ou no meio do mar; deixar o coração vago e sangrante como um rio moribundo, como um trapo à mercê das mãos que se anunciaram cheias e mostraram dois buracos negros onde engolir o cálice sagrado da intimidade; partir para longe do dentro e não deixar de sentir como o ventre se rebela contra as lembranças, como nada resta senão a vontade de abortar sonhos, como um rosto ou um corpo ou uma palavra se interpõe entre o coração e a alma, como custa manter a porta aberta e desafiar o frio do inverno que se anuncia nas covas caladas do que um dia desejamos, talvez a carícia ingénua, talvez o gozo sem cobrança, talvez só uma verdade nua no meio da neve a aceitar a queda, o frio e o vento num sorriso frontal, simples, derramado sobre os ombros em sinal de dar, em som de luz, em sol de paz.

parar

à beira do rio gasto, às portas da menina, dançar em voltas, sem encostar, girar sobre o superficial: a minha estratégia é fugir para a frente mas com os calcanhares do passado, no encalço do que em mim não atribuo: mãos com dedos, discurso, tacto ou coisa que valha. segue-me a rua, o pátio, o chão frio do licéu ou a madeira da barraca, ao silêncio ou a rejeição em troca das boas-vindas, o caminho de volta para casa a pé na chuva ou no sol; na orelha sentado o rosário de proibições murmuradas sem domingo, o martelo do juiz , o medo, o lacaio do tonal, o olhar torvo ao interior, as nuvens no rés-do-chão, o nunca mais chegar a um local que não existe, guardar esse lugar que não possuo e ao mesmo tempo me pertence, derreter o paradoxo, chegar ao ponto de partida sem sair, chegar a ser o que já se é, algures,  atingir o trampolim para o salto interior, a aristotélica passagem da potência ao ato, da ítaca sozinha ao caminho, pois é por ulisses que ítaca é ítaca, e vice-versa; assim, como um abutre dar voltas e mais voltas como num cemitério onde os túmulos são as estantes com objetos vácuos, onde a memória é o castigo, a amnésia é a condena, o futuro uma nebulosa e o presente já se foi. girar, girar e parar no ponto exato onde a única via é avançar. às portas da verdade, servir o medo da escuridão e parar. para dar o salto.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

vinco

vinco-me nas margens que são os lábios para acordar do sonho ou pesadelo, nesta falta de água que comigo amornece cada dia saltam as peles como os passados, as palavras por dizer, os beijos, as falhas, tudo o que nos fez espelho e foi golpe que deu vida ao presente; vinco-me para saber que estou acordada, que o sono não tomou de novo as rédeas e a maia cega os propósitos e os verbos; vinco-me porque entre nós deve sempre haver o tacto mas há dias em que tudo é tão longe, tão impossível, tão obscuro como o bréu dos corações salgados como o peixe, secos como uma rês morta no sertão; vinco-me para acordar as horas para a esperança, para apelar ao gesto dos olhos limpos, para sorver o que resta de vivo na pessoa, em ti, em mim, tão bárbaros, tão vivos, tão angelicais.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Tudo é iluminado

A coisa mais iluminada são os cúmulos-nimbo. Pela gordura deles nos escorrega a chuva, por ela a nós encostam as flores, os anos antes delas. Projetos de pétala batem na janela, atiram-se lá de cima para parir a transcendência em modo pianíssimo ou em concerto grosso, vidro abaixo, abeirando à parede, na festa do futuro que as pessoas comuns amaldiçoam porque não sabem que da chuva da janela vem o pão que põem à mesa, e da erva que pisaram, o ar que respiram.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Canción del guerrero V

Soy mujer; camino descalza por las hierbas, por las piedras viejas del camino. Dicen que una vez este camino fue río. Soy mujer; temprano, desciendo la ladera, pruebo las aguas donde renuevo nuestras ropas, nuestras pieles. En este río lavé a mi recién nacido. Soy mujer; regreso por la loma, la ropa en la cabeza, mi hijo a la espalda. A veces, me paro a descansar un poco. Me siento, vuelvo la mirada sobre el valle. Las recias rocas me parecen mi hombre. Los árboles ondulantes, mi madre. A veces, las nubes parecen frutas, o animales. Soy mujer; miro de nuevo al suelo, sigo adelante.

sábado, 13 de outubro de 2012

dedos

olhas-me e lábios em sopro brotas uma palavra que se enche como o vaso com flores que transborda, sobre mim caem girassóis e o tsunami que percorre a mesa numa pressa louca por lamber-nos os braços, vaga que nos desliza pelas mãos e explode no chão salpicando-nos as pernas nuas enquanto nos olhamos, assim nesse arrepio de junção, a água fresca nas roupas e os dedos que se tocaram apenas um segundo; e a dúvida, que arrepio foi primeiro, o da água, o dos dedos?

Intervalos I

Ser feliz
é a arte de borrar os limites da memória
e resgatar as cores de entre a negrura.

Aprende-se,
nada tem a ver com os factos;
é um calor que eleva os tornozelos
e se enreda nas mãos que abraçam instantes.

É um caminho
uma ponte, uma congosta, uma praia
onde estendemos as conquistas
sem darmos pela proximidade do mar,
pela maré que sobe,
a onda que nos gela os pés
arrastando conquistas, roupas, sorrisos
tudo o que julgávamos ser,
o que pensávamos sólido e foi volátil.

É um ato consciente de inconsciência,
recusar-se a contemplar o desejado,
uma insurgência da memória,
uma deserção de cobardes que nos purga
e nos deixa a fragrância do futuro.

É irreconciliar-se com o leito da desgraça
do que somos, não do que vivemos,
do que desejamos, não do que já temos.

É virar as costas ao lamento
e entoar o canto do ar que nos açoita o rosto;
é também precisar de uma berma, um jardim
crescido à margem dos caminhos quotidianos,
um pé descalço na altura certa,
uma certa memória, um certo esquecimento,
uma toalha para secar as águas do passado
e uns dedos ágeis que libertem as correias
que nos atam às malas que arrastamos.

Ser feliz é a arte de se demorar no efémero,
de esticar o tempo nos lábios da memória,
de estender o riso no tempo intercalado,
é o ofício de entrançar os fios do sangue
até lograr um tapiz inesquecível, porque
a felicidade habita os intervalos,
nasce enquanto toca a campainha,
cai-nos do bolso no recreio e sara
a memória e os desejos,
as mãos gretadas, os gritos, os medos.

O riso é uma pétala um segundo antes de cair,
um instante de beleza derradeira,
por isso as virgens colhem rosas
e as mães se demoram nas carícias.

Para sorrir é preciso ver,
é preciso compreender que os versos se desfloram
como as palavras caem do céu nas madrugadas
e assim de manhã os risos povoam a geada
para fazerem crescer a erva dos serões.

In Livro do Riso e a Memória, inédito.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

camino

Camino. A veces me pierdo. A veces me encuentro. Más adelante, en el cerro. Más arriba, en la montaña. Más abajo, en el cañón. Más adentro, en la cueva. Más callado, en el silencio. Más agudo, en el do. Más claro, en el rayo. Más oscuro, en la luna. Más lejos, allende. Más cerca, en mí. Más brava, en el pecho. Más cobarde, mañana. Más valiente, ya. Más alta, la nube. Más baja, el polvo. Más con, el otro. Más sin, ego. Más duro, piedra. Más flexible, bambú. Más áspero, verdad. Más suave, flujo. Pero camino.

que nada a fugida

tomo os pés ao de leve e sou corrente na água fria de agosto ao norte, pelos peixes que não oiço me sinto numa costa afastada, a dor é uma faca e o sangue corre como o arrepio até ao esterno, um dominó em queda ascendente até aos ombros, que nada a fugida, não, mas o vento a assobiar nas costas um nome de pedra ou vidro à nuca, um barco ou uma maçã que se fica pelo bordo do corpo e abre um sulco ao peito assombrado em frutos, sim, e limpo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

varanda

é preciso ser pelas tardes da varanda, porque nela se sente o golpe do adeus calado, o gole de chuva que nos acorda para os ciclos, a breve estadia dos corpos. nunca se repete a cor, e no entanto todos os dias entardecem. é preciso dizer que somos água pelas paredes ou pó pelas estantes, pousio breve em que as horas se delatam taimadas como exércitos de gandhis, ora calando no sorriso da loucura que habitamos, ora sendo prata como o mar nas férias, ou rua como as cidades velhas no natal. é preciso ser anta como roseta, nuvem ou janela, tudo no embrulho das águas, porque nos dias breves em que os rios crescem nascem deusas e as montanhas transparecem ventres enquanto nós, condenados ao fim, nos atravessamos do efémero até ao enlevo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

hortênsias a secar

não te deites sob os lençóis da ira. encosta o lábio ao perdão, não existe cama onde o vento não espalhe as mornezas do amanhã apesar do frio de ontem. pensaste ganhar, e talvez até algumas migalhas caiam no teu ninho fora de horas. mas tudo o que pelos andares da noite se torna água escoa dos sonhos e faz crescer cactos e invernos. tu ventaste o passado, setembro foi fevereiro e cá se fez o sertão no músculo íntimo, na cama lilás cresceram cactos e esqueletos, os teus pés desencontraram os meus porque andavam atrás de alvos gastos, tentaram a hera pelo muro, as janelas, a cozinha até desconseguirem o sonho, atravessados por um mar de gelos, mentiras e livros vazios. enquanto isso, o tempo passou e eu tinha posto as hortênsias a secar. por isso, agora, tu já não és e na cozinha a beleza ocorre num bouquet cinzento-lilás que se forjou caladamente enquanto a distância nos ia acontecendo.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

fomes

os degraus do tempo crescem baixo os pés dos mortais enquanto as teias do tonal crescem sobre as almas e as envolvem na mais secreta escuridão, na mais obtusa das memórias, no mais perverso dos jogos, que é o xadrez da vida, a matriz de cálculo perfeito onde nos movimentamos como cobaias, felizes cachorros prontos a ser vendidos a um amo que confunde amor e posse. enquanto isso, as palavras jorram por entre a saliva, por entre os dentes e a língua sem licença e encostam às paredes porque são palavras cansadas como anteontem ou hiperbólico, tudo num bípede turbilhão de sístole e diástole que se desencontram às noites e esbarram ao meio-dia como o sono não dormido ou a vigília indefesa perante os monstros que nos tornamos, perante a luta em que abrimos o dia para arrancar um sorriso que seja ao empregado de mesa ou o carteiro, porque há tantas fomes como pessoas e tantos sonhos como corações.

Zeus numa mortal

O coração teu serão os meus braços longos e brancos como o verão polar. Agarro-me a ti como mexilhão à rocha, sou grata à ira do mar que nos une. Permaneces calado e expetante como uma estação enquanto eu passeio os olhos pelo cais da tua nuca. Oiço uma voz dizer: beijo número cem, cais do peito; beijo número mil, cais da fronte; beijo número cem mil, cais da boca. Passeio demoradamente pela calçada tua, como só um andarilho. Sou ave - voo por cima do teu teto de vidraça e a tua paisagem é-me estranha e familiar como uma viagem sonhada. Cresço no teu fôlego e sou tudo o que te olha sem ângulo, o olho que és, em redondo, à tua volta, o receptáculo do pensamento teu, tu absorto na beleza de uma teia de aranha ao sol enquanto te penso, te invado como um bafo leve, finalmente possuo-te e em ti assento como Zeus numa mortal.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

guardabosques

O corpo da mulher caminha-se pelas bermas. Sofre-se como procissão de joelhos pela estrada, pelas pedras, até ao altar onde depositar as flores da nossa fé. O corpo da mulher não cabe nas mãos de um guardabosques, não entra pelas portas de uma casa velha, não sobe pelas encostas da fome. O corpo da mulher enrosca-se como a hera pelas frestas da vida e assoma flores pelos buracos mais inesperados, sejam eles as horas da noite, uma toalha branca à mesa do almoço, um cheiro a orquídea nos lençóis. O corpo da mulher é florido, é pomar, ramo que pelas grades fora se estende e alimenta o vizinho distraído; fruta que pela casca se desfaz e no solo enxerta uma vida nova, assim, como quem canta ou assobia ao varrer as folhas do outono. O corpo da mulher é uma verdade que salta pelos contornos da altura e o comprimento e voa ao futuro onde se recolhe no amor dos frutos e as lembranças.

domingo, 7 de outubro de 2012

conjuro


Me siento a descansar junto al camino, a la sombra de los que se han sentado antes, los que se sentarán después. Hoy te escucho. Te conjuro entre los matorrales, como una piedra gastada o una hierba simple. Te sé grande, te sé en lo pequeño. Con mis recortadas manos abro paso en las hierbas comunes. Hoy te encuentro en las piedras ardientes del mediodía, te escucho hablar en forma de lagarto al sol, tu rastro. Hoy eres el silencio que mueve, la materia oscura que sólo en virtud de su efecto en los otros se adivina.

Paris

serei eu quem espere na beira com a tocha pronta para te acender sobre as vagas que nos consumam, será uma mão minha que te conduza até às minhas trevas, a caverna onde femeamente te espero desprovida de história ou pecado, serás tu a atravessar-me como o rio e eu serei a mágica que caminha as pontes à tua espera, calma ou aos gritos de ti que és tão cheio do que dá para ser e o que nunca foi, em mim, tão enchido da falta de mim, que em mim virás ao mar e eu serei a guardiã das tuas águas interiores derramadas para gozo das ninfas e os centauros, Paris que sou de ti, porque te espero em luz e torres e arcos do triunfo, colorida e transparente à espera do teu corpo franco entrar-me pelas ruas da saudade, pelas pontes de Cortázar até ao Sena.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

tempos idos

pelos trilhos ínfimos onde acontecem as verdades maiores, pelas rotas pedestres onde as pernas fraquejam perante o olhar do outro. pelas abas da montanha onde os monges se tornam cavaleiros e vice-versa, pelos rochedos onde os diabos que habitam o céu nos esperam. pelas correntes que atravessam barcos, fantasmas e lendas, pelas redes que se arrastam pelos mares infernizando golfinhos, arrancando algas. pela estrada lumínica onde encontramos o verbo em sumo, pela congosta onde os sonhos anunciaram tempos idos. pelas batidas do vento que entre as árvores fomos, pelas estrelas que nunca houve sobre nós.

tão escuro, o antes

livro: livre, para nunca ser possuída, só procurada, diz ela do além das coxas, da fronteira dos lábios, o espaço limpo à volta, essa bola de sabão, leve, de leveza e de levar. ou então: deixe. deixe ela caminhar no silêncio, mulher é passagem, alta-o-fogo, meandro a evitar choque. ele: olhos, mãos. início, força, sentido. o que poderá, formulação, hipótese, gérmen, intuito, primeira direção de uma pupila que procura. caça. casa. calma, à tarde. evoluir para mão morna, dedo que já não vinca a página, mas saliva iniciática, verbo pronto a mergulhar nas águas dela, salto, envolvência, lançar o hálito até atingir a sereia e embalar o frémito submarino, tão frio, o fundo, tão escuro, o antes.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

curta idade dos abraços

redunda-me a água que tudo se resolve em adeuses bravos, leites derramados sobre a ferida aberta, um coração abre-se hoje e amanhã é o grito que não parte, que se fica pela garganta seca, pelos olhos hirtos, pelo rosto incrédulo. nunca temos tempo para aprender a derrota quando ela vem pela traição, chega feita abutre e lá foi o nosso sonho, quem diria aquela borboleta se tornou urubu e desgarrou as entranhas da montanha branca, os silêncios, aquela barbárie incógnita, aquele roubo taimado, aquela vitória sobre o nada que se julgou viva, a curta idade dos abraços rendida ao espetáculo do ocasso mais atroz, a cobiça, o cabelo branco e as mãos ainda com tanto para dar, e mesmo assim não ceder ao medo de deixar a porta aberta, levantar-se perante essa batalha última e sozinha que acontece dentro, e não ceder nem um passo à frente da descrença.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

dias como gomos

se as palavras fossem prescindíveis. no fundo, na superfície, o poema é a fugida, a cambalhota a procura do além. escrevo para rebentar o tempo pelas costuras, como quem pega na vida arrastada do passado, borborigma até parir dias como gomos. se o mundo fosse um fundo de oceano atravessado de uma lentidão que torne tudo tacto, líquido acariciando ombros, ondeantes os cabelos e os gestos. mole, afinal de contas. detesto as arestas, fujo sempre à questão, porque a questão no fundo é a distância, a fossa que nos afasta. escrevo para esquecer que a matéria é breve e os corpos são impenetráveis.

milho

Aspiro-te no cheiro dos bichos. Estudo-te juntamente com abelhas, libélulas e pirilampos. Há dias em que me pareces uma borboleta espalhando pólen pelos pastos. Ontem, eras uma pétala a descer o rio: deixavas-te levar na correnteza num quê de criança que olha o mundo do carrossel e tudo acha mágico e belo. Hoje observei-te e o teu corpo artrópode parecia um grão de milho. Vinha a água pelo rio abaixo e atiraste-te ao meio das gotas em gentio: eras música no canal do moinho. Uma criança acordada tomou-te na mão e pelo buraco da mó de cima em dança foste farinha, amanhã serás pão de milho que mastigarei deliciada sabendo-te preso aos meus ossos e membranas.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

ahora que el agua

ahora que el agua trepa las paredes de los cráneos
convertidos en macetas
nada nos separa     nada nos une      nada es     todo es mentira
quién ha dicho que mañana va a llover
los lunes crujen porque siempre hace frío al regresar
no nos alejamos del pasado sino de lo imposible
no queremos ir al mar sino abrazarlo
y no llorar cuando se nos escurra entre los dedos
hay una brújula orientando al oeste donde todo es enterrable
donde nada nos juzga
donde podemos aplaudir lo cotidiano los despojos
el olor a frito y a cuarto de baño
donde podemos gritar sin esconder lo feo
permitir al otro ser lo que es sin eufemismos
no me quieres pero no importa yo tampoco
me quiero y
así seguimos por los siglos de los siglos a pecho abierto
preguntándonos quién has sido dónde he estado
porqué nos acercamos para hacernos daño

culto de pequeños ruidos

tú desdientas las memorias mientras
yo paseo por mis manos una manzana
nuestras verdades míseras desnudas
amarillas maravillas
curvas de silencio que pulen las aristas
de esa nube que podría amenazar lluvia
de piedras y palos pero riega un suelo
donde a veces crecen flores impensadas
no te peso no me mides
nadie espera todo se reduce
a un culto de pequeños ruidos
los segundos discuten sobre nosotros
mientras el sol nace y nos ilumina
las manos aún calientes aún envueltas
en el último sueño
que me cuentas

Vénus às segundas

no mar somos pares, pescadores, sobreviventes da noite e do desejo e assim tu és corpo que ara e eu terra que aceita, tu ferramenta que cava e eu rego onde plantar semente para depois voltar à tua boca de pão de broa com passas, nozes e leite quente, nalguma parte do meu corpo escondida e renovada cada dia, na branca pedra de Vénus às segundas, nas teias do ventre aos domingos, nos bicos dos seios ao meio-dia; e se, meu amor, tiver uma casa onde te esconder, uma água onde gozar, seria térrea ou quinto andar? poça ou baía para nadar? seria morna baía de ti onde mergulho até tornar-me água e sentir-te fundo habitante do meu mar ou entalado areeiro do meu corpo como amêijoa ou ostra minha até ao tutano?

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

fala

fala, amor,

como eu te beije? na dança das serpentes, no riso? e os meus lábios, por onde entrem? pelos cais dos sussurros, por qual dos seis sentidos? hei de beijar-te o riso na dança da serpente? meu corpo acordado, e meus dedos longos, que façam? remos da piroga que te sulque, caules de um bouquet de flores? povo na terra tua generosa? no baixo equador dos meus lábios navegáveis, por ti em barco ou piroga ou nu e a nado? e a minha língua, onde aporte? nas Índias dos teus temperos? na proa do teu corpo em caravela? posso prevenir-te das vagas que talvez te acendam as velas e as delícias? das cavalgadas onde sejas os meus pés na tua terra? naquela terra onde eu sou criatura de fruto efémero e boca dormente, onde te guardarei a colheita? no colo das coxas, na poça da fronte? nas borboletas, porque nas asas delas voam as palavras escondidas? nos desejos guardados na saliva, as línguas de espiral despregáveis até o fundo das entranhas minhas? ou nos prados das línguas, sumos de cereja, portas entreabertas quando te aproximas, por onde te espraias nos sentidos a cavalo? nas horas extensas, nos minutos, nos fogos-de-artifício, os mares ou os rios?

fala, amor, 
 
de entre todas as palavas e os segredos, com quais devo conduzir-te à rendição: pólen, cerne, mastro, vento?

pêssegos

eu olhava para ti e diza: e os pêssegos, também amas os pêssegos que colho no verão? do nosso amor simples como o mês de agosto, cheio de vindimas e açúcar colado às pernas, os lábios, os cabelos, dividimos os pêssegos pelas mãos e pelos corpos e assim ora escorria o sumo nas tuas costas, ora tu bebias uma pinga na poça do meu umbigo, um dia foi assim, porque havia tantas frutas, meu amor, e éramos tão jovens e tão viçosos na vontade de amar.

jogo de forças

não entres pelos cantos, não como um ladrão. não espezinhes os passos do passado, os tactos. pelo que deixaste de ti nas minhas mãos, ficam os dedos tintados de substância óssea. por isso, não entres pelos cantos, pelas frestas, por baixo das portas fechadas. é a vez de o ar passar. é a sina dos aprendizes. não te tornes pedra, que pelos olhos jorram tempos futuros. deixa-me ser colibri, a quietude é o jogo de forças mais perfeito. o teu leme virou para águas obscuras e eu desaprendi a ser lula. não me alimento de fundos ou dejetos. não me puxes das pernas, que mais pareces um náufrago que arrasta em vez de nadar em direção ao sol. salva-te, se podes, que eu já cheguei ao porto e nada me é mais belo que o entardecer e as bolotas em outubro.