A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

domingo, 30 de setembro de 2012

Alejandra

Nada lhe era pelas noites ou pelos dias, apenas as palavras viradas para um adentro, um lá muito fundo adentro e baixo, onde aconteciam tubarões e madrugadas, vulcões e unhas roídas. Os seus diários mais deviam ser chamados noitários, pelas horas, pelas palavras, pelas zonas obscuras que emergiam entre as linhas deles. Ou então certidões de óbito muito adiantadas. Pouco mais sabia do que da morte e o sangue. O olhar era turvo, os cabelos desleixados caíam sobre os olhos e era aí que as mãos se levantavam num espavento inconformado, os olhos piscavam como lanternas fracas no nevoeiro. Ela, sentada perante as páginas brancas, perante o vazio que dela exigia mais e mais. A página branca era não um convite, mas uma imperiosa ordem de vazamento. Tudo nela era ela, espiral centrípeta, golo que engole o próprio sangue, o cuspe, submersa num gosto salgado de mar reduzido em fervuras sucessivas, amargo e denso.

sábado, 29 de setembro de 2012

pedras como amêndoas

há em ti qualquer coisa que não se segura. qualquer coisa frágil que pende como um candeeiro enorme, e ameaça cair em cima das almas distraídas a contemplar a beleza com que te trabalhas. nada cultuas que não leve ao êxtase da ternura, talvez uma vontade antiga de ser avô e calar o choro de um bebé, ou ouvir um pássaro e saber o que ele festeja ou anseia. tens pedras como amêndoas para olhar às tardes, e nada nem ninguém te afasta dos odores de um jardim cheio de grilos. és nas noites um pirilampo que, no ciclo do que lhe é essencial, alumia porções de ar, folhas ou aranhas. arrastas pela terra preta palavras compostadas, feitas em líquido fresco ou pasta, gotículas de voz que encostam às ervas, e se escondem como bichos na barriga das pedras para saltar às nossas mãos e corações quando as tocamos.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Ch'ien

É mais pela flor que te revelas início.Ch'ien em nós foi decisão certa, inspiração tua, semente de ti; assim por todos os dias e noites a criação nos respira, dentro e fora, sístole e diástole do verbo. Ainda durante a noite o nobre cria e recria a palavra amassada da matéria onírica que é a mátria aonde regressamos. Não me elevas pelas costas da vida, pela baixa da cidade, mas pela frente do belo, pelas lombas das conchas, pelo caminho da reverência ao ínfimo, a farinha de que somos feitos pão levedado na madrugada do verão para desjejuar as almas, maná dos tempos que nos vêem passar os versos e as batidas, os espasmos do esterno, a emoção desventrada pela beleza exposta sem escrúpulo, nua, desgarrada e nossa.

canción del guerrero

No engaño los caminos por donde discurre la voz del tiempo. No sueño con palabras grandes, esdrújulos pensamientos. No me toma la vida en un metro brillante y nuevo. Mi paso es el del gusano, hecho a su medida, para su sustento. Bello para el creador; a ojos del ignorante, feo. No huyo por la cascada para esconder mi sombra en un agujero: soy la sombra, el lado oscuro, los surcos sucios entre los dedos. Huelo a tierra, a agua, al fuego que calienta en invierno. Camino descalzo y desnudo por los cerros. No transacciono, no busco oro, lentejuela, cetro. En la hacienda siembro como esclavo, sólo yo sé que no tengo dueño.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

talking to an angel

desata-se a tempestade. pássaros que te habitaram fingem que é outono e migram; olham para mim, dizem que mudei as estações... olho em volta e procuro os restos das asas, as penas almofadadas do queixo encostado no peito. calo, deixo setembro tomar conta. ele é que sabe de luzes em descida, de bolotas e folhas que estouram como granadas para nutrir a terra em março. quis ouvir-te mas temos os relógios descompassados, falas em janeiro e oiço-te em agosto, venho pela praia do riso e tu tomas conta da montanha branca, agora tinta de saliva, líquido esquecido entre os lábios secos de manhã. quem quis ser anjo? não eu, I wasn't talking to an angel, so sorry I wasn't talking like an angel... qual anjo, qual música, qual adeus, qual silêncio a não ser o da entrega, o café de manhã, a janela onde pintar, a escrita, a enchente, a beleza, o gesto que acolheu os olhos, os braços abertos até à entorse dos seios, a memória.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

somos

Somos pelo que caminhamos entre as ondas, pelo que de nós surge no meio da tempestade, náufragos, corpos vivos e salgados na beira da praia. Somos porque sei como olhas o mar à janela, e nele eu me mostro para ti uma incógnita. Uma pergunta cuja resposta és tu próprio. Somos por entre as correntes, somos em essência a aprendizagem após o ciclone que nos abalou, que mostrou as nossas fraquezas, essas que aceitamos para amar como na rosa aceitamos os espinhos que a protegem. Somos porque há em nós o poder de os deixar cair e tornar-se uma rosa mais simples, doce, dadivosa. Somos porque todo o soldado volta para casa e sabe que no frenesim da batalha tudo é confuso, e por isso é preciso viver em paz e fazer o que é devido. Somos porque entre nós houve nuvens e pássaros e horas simples e corpos abraçados por horas, suores, lábios, líquidos mornos onde nos deixamos embalar. Somos porque para aceder à montanha branca é preciso esfolar os joelhos, as mãos, os pés, que se tornarão no mais precioso de nós, na dor que prove o nosso esforço e o direito ao paraíso ao chegar ao cimo. Somos porque o caminho certo é sempre o mais difícil

hombre en el cerro

Entre los ojos de mi hombre se yergue una verdad.

Mi hombre no merece el destierro, sino el alma. Cada mañana se levanta y en el eje de su voz proyecta soles y lluvias que limpien el aire viciado.

Mi hombre es simple. Sabe que el viento es la sombra del agua. Disculpa a la lluvia por ser mensajera, a la nieve por ser blanca.

Mi hombre es sabio. No busca: su unicornio lo encuentra. Cuando lo cabalga, la tierra se apresura y brota yerbas y limos que ablandan su senda.

Mi hombre tiene dos manos. Una para la belleza, otra para el ánimo. A veces, los juegos del agua lo tientan. Pero él no es ganancia, no es pescado.

Mi hombre sube a los cerros con el paso breve y la mirada baja. Nunca los astros lo han deslumbrado. Cuando el sol afloja, osa mirar a lo cercano. Quizá una flor, quizá la arena que ha pisado.

Mi hombre regresa y trae centeno. No entiende de molienda, ni sabe de campo. Pero conoce el valor de cada grano.

pelos campos impensados

pelos dedos da terra sulcada a rítmicas braçadas, pelas poeirentas tardes ao pé do mar e as estradas, pelos sonhos e as florestas atravessadas, pelas cicatrizes que a infância confere como dote para a vida adulta, pelas insónias também plenas de oxigénios, pelos coutos rodeados para evitar os epicentros da fraqueza, pelas lagoas engolidas no peito que se tornam poço de palavras. pelos campos ainda impensados, implantados, insubordinados aos cantos de sereia, pelos ares que não esperam o vento porque o sabem breve e inconstante. por este agora bordado com flores, cores e palavras.

engenho

pareces-te com as pedras milenares: passam-te ao lado batizados ventos de mudança e tu sorris e permaneces: sabes que os ventos não vêm do sul ou do norte, mas da dança do sol e as águas. e sabes mais. sabes que os moinhos obedecem ao mesmo engenho: querem pão. pareces com os calhaus dos rios: correm-te pelas costas as águas claras das torrentes, nelas deslizas, corpo rombo pelos anos caminhados, por entre as ervas e as algas, e as mãos das mulheres que lavam a roupa.

poesia

ela é o caminho da verdade revelada. a estrada da realidade última da criação, a génese onde tudo é possível ainda, longe desta estrada quotidiana que os nossos corpos atravessam a custo. a vigília que comanda este sonho obscuro dos ossos e músculos, pedras e dejetos. todo aquele que a habita vê pelos seus olhos, e assim, para ele tudo é mais intenso: a mentira tem os olhos mais escuros, a mesquinhez deixa a pele pegajosa e densa. mas também a verdade resplandece como uma esmeralda, a simplicidade é uma religião, a beleza o pão de cada dia.

quintal

é assim que os dias se passam na nossa casa. alguns deles, no barulho das panelas escondo o silêncio teu enquanto crias uma palavra nova. hoje, por exemplo, fui abrir uma janela e lá tinhas afixado um beijo d'ob ra. não que me incomode. a poesia tapa-me o sol dos olhos e assim posso sentir a palavra e o camélio do quintal. não fosse a tua pegada, estaria agora a franzir os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a poesia viva.

molho

chamo-te pela espiral que te mantém sentado sobre as termas, sobre os túneis iniciáticos, horta de framboesas, quinta da regaleira, devagar lanças a brisa na palma da tua mão e uma bola de sabão é palavra sossegada que cai na minha boca; assim me ofereces o orvalho e a geada e os ventos do sul atados num molho como se fossem ervas simples; assim me inicias nos segredos dos ocos teus; assim te me apareces em forma de gato sagrado, ou de cavaleiro ou de águia ou de barco, calmo, ao sabor das ondas navegado. não temas pelos nomes dos deuses futuros, sou pajé na aldeia dos teus trilhos, sou mercúrio, sou xangô e é quando pronuncias o luar ou a espuma do mar que te compreendo além do âmago e te abraço.

mundo

eu sei que não pertencemos a este mundo, por isso pertencer-te me é mais próprio que pisar o chão ou enterrar os dedos na terra para sentir que continuo viva e posso desfolhar as flores à procura da tua resposta afoita. um dia o sol passou por trás da lua e tu disseste: que nada me é mais perto do que tu; e tomaste-me a mão e nela pousaste o sol e a lua, e eram os dois tanto calor e tanto frio que só pude lançá-los ao voo e torná-los uma gaivota que no verão acode à tua janela e vigia o teu olhar sobre o mar, ao longe.

procurava

tanto te procurava, que às noites enveredava pelo bosque a que pertenço e sussurrava o teu nome nos buracos dos grilos; da minha boca descaíam flores e folhas e rebentos que outros viajantes tomavam como suas, confusos que estavam de me encontrar assim, perdida à memória do teu nome, perguntando-te por senhas aos bichos, sentando-me nas pontes para ver se passavas no rio igual a uma folha no outono; barulhos estranhos soavam às minhas costas, virava-me eram as armadilhas de Adão à caça do seu sustento; eu ouvia-te e julgava-te o lobo e fugia pelo monte acima até à cimeira e dali gritava e era uma águia no estômago a bicar a fome de ti.

canto

É o canto dos círculos das colheitas, o canto do que acreditamos, que me passeia pelos ouvidos interiores; o canto dos peixes vermelhos e azuis no mar esverdeado; o do melro de manhã cedo antes do pão; o canto que nos torna uma flor única, um cisne negro em toda a extensão do símbolo, um lótus sem contorções, um enxame de pirilampos na êxtase da procura, uma nuvem lilás que se aproxima e se revela feita em mariposas gigantes que voam entre nós e nos tocam com o pó simples das suas asas.

mãos

as tuas mãos foram feitas para acompanhar os astros. são feitas da matéria dos tempos antigos: formaram-se a custo de rochas, ventos e feitiços. são feitas do cheiro da chuva, transparentes como o sal que se mistura aos elementos puros. vencem porque não lutam: imprimem. não tiram: são. sobem pelas tardes das cores até ao fôlego empenhado de um violoncelo. balançam nas tardes à varande e te descobrem limpo, próprio, contundente como um livro. as tuas mãos são a última das águas, por isso taças. são cálices para o descanso das verdades emergentes, caminho translúcido, líquido dúctil e quente, vinho. as tuas mãos são para ser bebidas, rápidas como um riso, rotundas como o cerne.

rédeas

a forma em que o teu corpo toma as rédeas, se expande e retoma em mim a tua sorte, onde te sou jardim e te me desfazes em sementes de papoila ou cravo; a forma em que te rego à tarde como uma ponte translúcida num dia de chuva e tu és a poça onde me espelho e reconheço do mesmo além de ti; a forma em que o pescoço teu é um baobab ou uma sequoia ou um carvalho onde aninham seres mitológicos, um canto à habitação primigénia, o invólucro de um vazio onde sou Alice, caio-te pelo dentro das vozes e és frasco que diz bebe-me. e bebo porque quero conhecer as tuas estâncias, os teus becos interiores, espelhos, enigmas e equações irresolutas; a forma em que te revelas lúcido como uma taça de cristal, talhado por mãos que tratam de prata e diamantes negros; a forma em que o poder das fontes te faz queda, vale e foz do verbo feito aquém; a forma em que és a língua do tao e lambuzas na corrente nossa para resgatar peixes cheios de palavras.

agosto

nas tardes de agosto, eu caminhava em direção ao que havias de ser. saltava-te pela montanha dentro e trazia-te uma onça perdida como um pintainho. soube ler-te os pés carregados, e compreendi que de caminho ao mar, tu escrevias pegadas para as ondas aprenderem a poesia. nunca trocamos prendas; o sol era alto e chegava para acalentar os corpos. eu era um entardecer de lilás para laranja doce, e tu eras nuvem e saltavas em altura sobre mim, amante.

praia efluvial

era a praia efluvial, o bico das ondas nos bicos dos seios e dos pássaros longos como dias sem pão. deste-me os anjos caídos todos, para eu os socorrer, de nós. juntamos areias movediças onde ficar presos à poesia. tu desmaiavas de sol e eu contava-te os cabelos. éramos, e os olhos dos outros eram um misto de tela e partitura, nós truncados como um epitáfio. dizíamos: lua cheia, e um pardal saltava da tua boca ao meu ninho de águia, porque éramos fortes, e os dias eram largos.

belo

és belo, e de tão belo entras-me pelo poro entalado. fruto que tira sede, alma minha à revelia do que sou, cravo bem temperado, chuva que me chove pelos ombros magros, neve a derreter pelos braços, falas-me pelos cotovelos da ria, não te cales, não te cales que a vida é um pano gasto e a tua voz é o nardo. deixa-me estar assim, ao teu colo, esquecida das palavras bravas, longe do abismo das pedras e as migalhas, segura, abrigada de ti, belo, e de tão belo, fogo.

não somos titãs

não somos titãs, fugimos de uma terra submersa pelos nossos próprios pecados; assim nos estendemos pelos continentes, como nuvens ou ventos, ou pó do deserto. mas também como praga de lagosta emergemos às praias, aos vales pelos corações feitos em calhaus rolados, e no nosso idioma de patas e antenas, dormimos num frenesim de branco e vermelho, engolindo borboletas no pescoço, plâncton por entre as coxas, algas nos ventres macios. e descemos.

dragão

eu vi o céu pelos teus olhos, uma noite. dentro de ti era escuro, e cheio de constelações e hemisférios virgens. eras habitado por escalas próprias, notas brancas, negras, perfumado em colcheias que te escoavam por entre os dentes de manhã. sentava-me ao teu lado e ao fim do dia, eu, era os poros teus. não tinha visto nada assim, tão constelado. eras Hércules atirando à cabeça do dragão. eras Perseu à procura de Pégaso. eras de outra galáxia, eras Andrómeda. de repente, eras o dragão a engolir Hércules, Perseu, Andrómeda e os poros da Lua que eu tinha ganho com o teu jeito. eras tu a engolir-te nos meus poros, que eram teus.

barqueiro

dividida nos canais por onde me escorres de vida atropelada, és o borbotão desaguado mãos adivinhadas, criadoras, leme do barco rabelo pelos canaviais que emergem na foz. apresentas-te como um cuidador de cavalos, silente e corajoso. não é pelo fogo que se vence o mundo, dizes. como deus ex machina sentas e defines o rumo, nada te contém nem te empurra, a não ser o vento e a água. sento atrás de ti e fecho os olhos. o barco a cortar a água, dos remos descaem pingas do teu corpo calado. sinto-te respirar. este barco é o último, o rio já é quase mar, e as aves passam por nós como se não fôssemos.

menos é mais

acordo e as palavras são o caminho de migalhas para regressar à casa térrea, ao quintal; arejo os lençóis e o cheiro dos teus sonhos emerge em palavras que saltam pela janela e se misturam com a poalha húmida que hoje envolve a paisagem: andorinhas. acordo e falta-me o cheiro da manteiga derretida ao unísono, o crepitar dos corpos unívocos na fome de ingravidez que nos une, a precisão da fugida ao mato do que somos dentro, os laços afastados do chão, as asas atadas ao tempo. acordo e volto a ti e sorrio porque os afazeres calmos são o princípio da vida, são o abaixo do nosso acima, e volta e meia mergulhamos na cama das palavras a partilhar sussurros de manteiga e cravo.

anisotropia

verbo, ponto anterior ao início do tudo, demiurgo dúctil como um bambu, precisão no ausente, vazio de onde nasce o movimento, mestre da matéria escura, reflexo dos corpos celestes, floco anisótropo, silêncio floral no ikebana, em tudo te apresentas e celebras, em tudo te tornas epifania, emerso dos cabelos escuros das sereias distraídas, vácuo no alimento, invisível protetor dos astros e dos sonhos, constelação secreta, mistério volátil como os cílios de uma deusa que, escondida, passa as tardes calmas debruçada no tear das línguas que não falas.

tu

sobra-me o corpo, os braços, os espaços. falta-me o fôlego para te seguir o lume forte, queimas-me a retina a ponto de caramelo, tu. deita-me água na fervura do sul, que os ossos, os músculos com que transito o mundo já não servem. tento uma espiral derviche para te atingir nessa verdade transdimensional onde os nossos corpos celestiais se fundam e eclodam em palavras ora macias ora contundentes como o mar dos orixás. tu, sou desfeita de cristais sagrados quando me falas. tu, abres-me sem limite até à entorse da emoção mais entalada. reconheço-me em ti, assumo-te, de assumir, de somar, de sumo, de sumaúma. tu, água benta, saras os poros azedos, entupidos por lembranças secas. tu, antídoto de cobra silenciosa, remédio de tempo em suspensão, tu.

aguador

aguador antigo, transportas a torrente da fonte; nela metes o braço até ao esterno para parir as verdades escondidas aos leigos. tu, as formas frondosas em que te manifestas. nunca dantes foram transitados os caminhos que o além do humano toma em ti, a tua mão desmesurada no derrame que te torna vale arvorado, cascata de nomes e rumos impossíveis, essa caminhada nas curvas da linguagem, nas falésias do olho nu onde debruças o teu canto.

arara

abeirada ao cheiro que deixa o teu pescoço torrado pelo sol das dunas, sigo os teus passos, farejo-te neste bosque de engenhos alucinados. não pares, não, que é a tua corrida por entre os cipós mecanizados que te faz mergulhar em mim, te torna mais belo ainda, mais próximo de uma escultura de ébano com vida própria, uma estação propícia à êxtase. paro e fecho os olhos, assim posso ver-te íntegro, dos olhos da arara que te canta sinto os teus pés húmidos a desbravar o caminho, já sou o bosque que te amorna, te adorna, entorna a magia dos espaços virgens sobre os teus cabelos trançados em missangas, não fujas, estou à tua volta, em ti, sou tu, na tua voz

território do ambíguo

celebrar o território do ambíguo como os cílios o fazem sem palavras. os anjos festejam a visão do aquém, esta escola cercada por caixilhos em jeito de músculos e ossos, a relatividade, a impressão quântica apreendida em palavras absorvidas pelos bicos dos olhos. quem tem asas não precisa de ter os pés na terra ou levantar o pó das estradas. assim foi sempre, os deuses garantiram. no entanto, talvez hoje, nós, queiramos inventar um alfabeto sem tempo nem espaço. e os anjos, feitas as contas do futuro nascido dos nossos nadas, não serão mais para aqui chamados.

mulher nua

uma mulher nua é uma declaração de paz assinada nas redondezas do corpo. uma mulher nua é um seguro contra a fraude, chega ao pé de nós e não há como negar os seus ombros, porque dela depende o ventre cheio que nos traz ao mundo. uma mulher nua e madura é uma oferenda de mornas à beira-mar que encanta as ondas porque as cores do mar lhe pertencem por natura. não toma de empréstimo os ventos, não precisa: o sol modula o homem que dela se aproxima, e assim tudo volta ao seu lugar enquanto as praias trocam areias de oceano a oceano.

take a reset

nua que nem virada do avesso, dormente, tocada pelos bicos leves da relva, envolvida no cheiro húmido da terra preta no jardim adiado, abrem-se as mãos e dedo a dedo o dorso toca o orvalho. o dia é outro, o mundo outro, amanhã ja foi e hoje é um dia sem passado, como se nada fosse, como aquela moça de benedetti a programar uma amnésia para caminhar pela vida sem mochila. take a rest, ou melhor: take a reset.

a importância da maré

perguntar às sombras pelos ecos do sol que já se pôs, eis o drama. no fundo, tudo depende do olhar. fartamo-nos de procurar no entulho dos desejos despejados mas nada sacia a vorágine da matéria escura de que somos feitos, insatisfeitos. nós, o sofrimento, a necessidade da porta aberta ao que se encontra além da massa de ossos e músculos que habitamos. a dor como lembrança da matéria, a arte como salto quântico. o sábio aceita o sentido e rema rio abaixo. conhece a importância da maré. tudo é igual sem ele ou com ele, e no entanto tudo muda a sua presença invisível.

continuidad de los para qués

convocarte
para que me sacies el hambre de los labios
abiertos para que te mire con ojos de pez
adiestrado para abrir su boca en melodía
callada para no importunar la sinfonía de tus manos
lentas para no quebrar la porcelana de mis sueños
pospuestos para ceder el paso a tu ánimo
áspero para que no te lancinen los envites del pasado
olvidado para que no te duelan los tobillos al desandar los tiempos
idos para dejar lugar a dudas gritos preguntas con espuelas
clavadas en el pozo de mi lengua
concebida única exclusivamente para
convocarte

urge

frisar os modos: belo no homem é a maneira como cresce, como urge, esse quê de caçador polido, a vida a agir em nome próprio através dos corpos, uma flor que cresce na direção dela folha a folha, um livro amado linha a linha. um sopro leve após um dia polvilhado de coisas simples, um riso de canela, uma leitura fresca, um copo simples. tudo o que já foi é renunciável quando os corpos dão as horas. tudo menos os limiares que assumem perfis míticos na hora de alimentar as ânsias mornas, demoradamente regadas por atos e palavras que confluem no cesto da roupa, na noite.

homem

o que encanta num homem é o rebento, a decisão com que abre um livro decidido e lentamente deita uma página sobre outra como se todas fossem filhas numa noite de trovoada. a decisão de esquecer o abrupto e festejar as incertezas que adubam os amores, caminhar sobre as horas como criança ao pé coxinho, brincalhão, atento ao chão que pisa. um livro sabe esperar seu turno na prateleira, a vida tem urgências e mistérios decifráveis a quatro mãos. homem que ama sabe que cada página tem seu lugar, que a noite tem respostas improváveis, que os olhos por vezes são vencidos pelos sonhos.

ela livro

livro para ser possuído. livro: livre, para nunca ser possuída, só procurada, diz ela do além das coxas, da fronteira dos lábios, o espaço limpo à volta, essa bola de sabão, leve, de leveza. e de levar. não, antes: deixe. deixe ela caminhar no silêncio, mulher é passagem, alta-o-fogo, meandro que evita o choque. mas ele... ele: olhos, mãos. início, força, sentido. o que não foi mas poderá, formulação da hipótese, gérmen, intuito, primeira direção de uma pupila que procura. caça. casa. calma, à tarde. evoluir para mão morna, dedo que já não vinca a página, mas saliva iniciática, verbo pronto a mergulhar nas águas dela, salto, envolvência, lançar o hálito até atingir a sereia e embalar o frémito submarino, tão frio, o fundo, tão escuro, o antes.

chocolates perdidos

mesquinho foi uma vez o olho que poisou no ombro da memória como um pássaro poisa no fio do telefone sem saber o que por ele passa: sonhos contados, despedidas prontas, correrias, nascenças, frutos, descrenças, risos desatados. mas foi uma vez. talvez duas. mulher é caixa de chocolates escondidos, luta pelo efémero, cheiro sem corpo. fazer crescer os chocolates perdidos, isso é mulher. livro para cheirar a novo, longe de quem vinca os cantos. é preciso lavar as mãos, limpar as sombras, acorrentar os humores. nada do corpo, apenas um jeito, qualquer coisa que passou e deixou o perfume das horas: laranjas, caminho, o trânsito, uma canção antiga que sabe a novo.

Cosmoagonia

Quem sabe se eram, tinham, sabiam.

Quem sabe ainda os deuses não tinham nascido para lhes dar nome, sempre com atraso, eles à espera, convocados para uma ceifa nos tempos em que ainda não havia cereais.

Quem sabe o que acontece aos primeiros que chegam, a vida ainda não era e quando é, é para se viver, talvez quando o tempo fosse inventado viessem outros para escrever, outros de mãos moles e ideias calejadas, revistas, tomadas da memória do que nunca foi escrito porque o tempo e o espaço não eram ainda possíveis nem necessários, quem sabe.

Quem sabe um dia já era tudo nascido e a mulher inventou-se para ser silêncio porque os gritos dos partos nunca foram belos.

Quem sabe depois ela disse que sim e queria dizer que não, ou não sabia ou queria era só dizer, porque dizer era estar, ser ou parecer, uma cópula de sintagmas que lhe devolvesse a nascença roubada, lhe levasse a dor condenada.

Quem sabe ela tinha sido antes uma coisa pousada por acaso, uma vontade vaga que de tanto anoitecer se tornou muda e de tão muda branca, e de tão branca lua ou luz de empréstimo, ou guia de escuridões que tudo dá no mesmo.

Quem sabe houve também uma outra coisa lançada de um passado eterno, uma noção de princípio que não foi, um sempre em frente inverso e infinito, um berço pronto para o embalo do relâmpago ao nascer.

Quem sabe não queria tornar-se ele mas que diabos estava na hora e os deuses com atraso como sempre, quem sabe daí a urgência, a decisão, o caminho aberto, o riso, e ainda a mão que rebenta dentre o nada e toca a pele branca, muda, lua.

Quem sabe por isso os deuses nunca mais chegavam e tiveram que inventar os nuncas e o sempre, criar o tempo e o sol porque era preciso comer qualquer coisa enquanto isso e trabalhar para comer e descansar para trabalhar, e o raio dos deuses que não apareciam, pouca vergonha.

Quem sabe foi preciso descansar e até morrer para deixar de esperar o que nunca tinha sido.

Quem sabe por isso a única cópula possível abandonou os sintagmas e brotou da necessidade e o que há-de ser de nós.

adeus

a fresta é o que foi e o que estava por ser. escoam as águas ainda, até o tempo sua nos interstícios das horas, nada que não caiba num cabaz para partir em direção ao futuro. também entre os dedos escorrem alguns rescaldos do vazio, roupas usadas, uma panela gasta em cozinhar água com sal. não soubeste ficar pelos contornos, quiseste o tudo, o âmago do fruto proibido, mas sem responder à pergunta do cão cérbero. cuidado, os deuses castigam duramente os ladrões de febres e silêncios. não perdoam a cobardia. nada vai te pertencer mais longe dos teus dedos, ou talvez então alguma palavra minha ainda ecoe um dia neles e se enfie entre os papéis velhos, ou nos teus joelhos e te faça acordar do pesadelo que escolheste.

hortelã

É assim o nosso jardim. As vestes servem para cobrir as flores nas horas de mais sol, enquanto nós nos amamos à sombra da mangueira. Por vezes aparecem para nos visitar pessoas amigas com boas intenções. Elas trazem coisas imprestáveis como cadeiras, pratos, candeeiros que ficam para ali deitados a ganhar ferrugem. Quando chegam, e quando se vão embora, as pessoas amigas beijam-nos, porque assim ajudam. Elas não sabem que à noite há os teus olhos e Sírio, há os nossos pés e mãos, há as vontades. Não sabem que de dia, caminhamos por entre as árvores e apreendemos coisas necessárias à vida do jardim, como o riso das folhas, o cheiro do pau de canela ou o verde da hortelã. É coisa séria, o verde da hortelã.

perdidos

Dentro de ti são as horas sem tempo. Quanto brio foi preciso para desbravar o Éden? Quantas Evas sentaram ao pé de Adão? Cada deus distribui-se pelos campo como bem entende, nós cochilamos entre as ervas o sono da palhinha, do escaravelho, da formiga que nos sobe pelos braços. Somos barco e não sabemos onde termina a proa e começa a popa, e nem somos chamados a saber, mas a gozar o sermos sem fronteira no contato do mar e suas criaturas silentes. Passo-me e repasso-me da cabeça aos pés meus e não sei em que ponto tu és eu e eu sou tu, a ilusão de voltar à fonte universal, o desejo, a esperança de voltar a um nós que esperou por séculos ou milénios, porque ambos andamos perdidos, e na forma deste amor sem tempo regressamos ao que fomos antes da maçã e o esquecimento.

senha

Dizem que há um paraíso onde as terras se tornam ausentes de nós para nos evocar o gozo da língua viva, um paraíso que te nasce nos pés descalços pela orla do silêncio onde em pé esperas, nas conchas das mãos-praia onde te aporto com cheiro a algas e sal das ossadas nossas gastas de tanto riso, um jardim onde crescem livres amores-imperfeitos como o nosso que acorda de manhã vontade de cinzel para se aparar arestas e liquens e tristezas. Dizem que há uma floresta mágica e só nós temos a senha, só nós sabemos da porta, só nós somos aceites pelos elementares das águas e as pedras.

dias

É assim que os dias se passam na nossa casa. Alguns deles, no barulho das panelas escondo o silêncio teu enquanto crias uma palavra nova. Hoje, por exemplo, fui abrir uma janela e lá tinhas afixado um beijo d'obra. Não que me incomode. A poesia tapa-me o sol dos olhos e assim posso sentir a palavra e o camélio do quintal. Não fosse a tua pegada, estaria agora a franzir os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a poesia viva.