A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

sábado, 29 de dezembro de 2012

cactus

siete horas entre todas. cuánto falta para el hoy. qué débiles somos ante la huella del amor. cómo quisimos. cómo dejamos de querer. cuántas veces busqué tu adiós y me lo negaron tus manos que no fueron oscuras aunque fueran parcas. no tomemos el camino aún. no enfrentes las semanas que huyeron. todo fue mentira, siempre. al parto de la verdad, que es ahora, no le interesan tus labios. me siento ante la tarde. yace el año largo y mentiroso. cómo hemos podido escupir en nuestras manos y querer regalar flores a todos. es fácil crecer entre los cactus, lo difícil es ser cactus y quererse. y crecerse.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

voa longe

voa longe, pássaro funesto. breves foram as pedras mas a cada pena que largas o coração é turvo e fraco. sobes pelas paredes do futuro porque não percebes que o amanhã não é teu. é simples o jogo da morte, e é a tua vez. salto por cima das sombras com que me envolves, sei que das janelas ouve-se a chuva que anuncia a primavera: ao longe, março rebenta em borbulha nas sete luas de outubro. não há como fugir às asas da vida, essas sim, trazem sempre a verdade, mesmo se embrulhada em panos velhos. e já te disse: voa longe, pássaro funesto, é a morte, é a tua vez.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

alguém

subo pelas hastes, sim, a custo. como um guerreiro descubro ter sangue nas veias e cuspe na boca. há dias em que as espirais são mais antigas e phi só conta para trás em infinita corrupção da vontade, como um espelho da infância a puxar pelo caráter, esse jugo cujas setas são as memórias vertebrais, o hábito de temer de tantas maneiras como areias tem a praia, sendo que a praia não é o grão de areia, e assim os medos são todos uno. medo porque enquanto conto as areias e enterro as conchas mortas, alguém voa longe e eu sinto a penugem que deixa no caminho e se enfia nas concavidades minhas como um grito agudo, alguém que não me deixa, que não me larga, alguém que me fere à distância em que digo não de novo, alguém que foge do destino, alguém que somos todos e por isso também sou eu.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

margens

margens onde estarrecer de puro vácuo e olhar nos olhos dos outros com a distância ganha pelo coração, porque vivemos um tempo em que isto um dia são dias e não é possível esquecer que as orquídeas nascem nos troncos e nas bermas, vadias, imprevisíveis e determinadas como foguetões. por isso convocamos cada onda como um novo oceano e ouvimos palavras de mercador, por isso mergulhamos nos sonhos dos outros e nos deixamos ir na conversa dos barcos até nos encontrarmos no alto mar sem leme nem estrelas para seguir. por isso é preciso ter cuidado com os ombros, com os dedos, com as gotas de sangue que não somos mas nos doem tanto. por isso é preciso olhar para o céu e lembrar que ele não é esse, mas está lá para nós.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

validade

nada como a validade para o coração e os ossos da raiva, que são frágeis e se jogam sobre os outros como o granizo sobre a erva. chove e todos contam passados com os dedos, palavras, gritos ou dias em que tudo deu certo pelo caminho do erro. mente-se quem deita sobre o outro o olhar da ocasião sem ir ao fundo, mas também quem acha que a escada da vida não desce à noite. hoje acordamos heroínas e amanhã vilãs, prende-se a sombra às nossas asas e torna-se urgente desviver o passado erro a erro. nada como ser claro mas não alto, nada como ser pequeno e olhar em frente.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

matar ou morrer

há a crença do verbo, o salitre dos lençóis que crescem aos pés das camas perdidas nos desejos ao pé do oceano; há a vida da verdade incandescente que queima e empurra a matar ou morrer. dela me vingo, porque sei que as horas não nasceram para a violência mas mesmo assim num outro dia sem data, sem lugar nos arrumos do calendário, agrido, vingo, queimo, sangro. são doces como as tardes na praia as vozes do amanhã que se apresentam em jeito de ramos, casas a cair, encostas, pernas. tantas pernas a subir a estrada do futuro que já construímos para esquecer e recriar o pão. e assim seguimos pela estrada da ferida acima, a querer água e beber sangue enquanto julgamos que não temos culpa a não ser a da memória instalada nas células, na nuca dolorida pelo ego, essa criança louca que nos governa pelos cabelos e a quem sempre falta algo.

mochos

Derrotamos os anjos do frio enquanto os corações se batem em retirada até vencer pelo vácuo as escalas programadas, firmes e sem despertar a distância. Somos peixes num aquário de paredes mates, tu, eu, todos os que na ilusão da liberdade abrem os olhos de manhã e acreditam que essa estrela é mesmo Sírio, que a praia é feita de areia quase branca e o chá já está morno, assim sem mais nada, deixando tudo acontecer sem ninguém desmentir a chuva, os motores que esquentam a cidade, as estradas como veias grossas. Acordamos quando adormecemos, por isso, apesar de escravos sem remédio sabemos que só o coração nu atravessa as grades invisíveis e nos torna livres, por isso somos como o mocho numa noite sem estrelas, por isso voamos sobre os corpos sem ninguém dar por nós, de asas abertas e olhos escancarados, à procura do que ninguém vê.

sábado, 15 de dezembro de 2012

dentes

dentes como quartzos, como pedras rosetas numa terra virgem. ligar a luz pelos poros, não há lugar fora do sorriso e as luzes fazem sentido no aconchego da boca. morna. lentos em dizer a vida porque enchem as horas sem esperas, sentado num canto a dar as boas-vindas ao minuto, dentro a correr pelas florestas caminhadas sem passos à espreita dos bichos calados, aquela criança, aquela mão que afasta a erva para conhecer o percurso dos artrópodes. dentes lúminos com que beijar palavras escondidas na idade antiga, com que dançar os silêncios espreitados do canto, a música dentro, os passeios. a clara chegada dos rios à boca da manhã, fulvo brilho da vida à espera do chá e as pedras.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Dá-me

Dá-me as águas do tempo ido pelas bermas dos lábios

Dá-me a cansada visão do ontem
a vida pelos ombros como lã ou algodão florido

Dá-me vinte notas de beijos ou a cada passo uma razão

Dá-me pelo dia uma palavra que desmentir à noite
quando os sonhos nos tornam pessoas verdadeiras e sozinhas

Dá-me cada erva em que te deitas para investigar a música dos bichos 
e do orvalho

Dá-me a penumbra em que te tornas uma ideia fraca 
ou um presente dos adeuses

Dá-me mãos como arames farpados 
a tocarem instrumentos prontos a morrer nas ruas 
cada dia com cada pessoa que passa
e te olha

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

uma pessoa

 Para a Ana Paula

uma pessoa qualquer
numa tarde qualquer
de um dia qualquer
diz:
os homens são fracos.
será que é preciso guiá-los, pergunta-se.
mas uma pessoa
quer água, não reboques.

uma pessoa acha que por vezes
se lhes juntam nas palavras as mãos e outras coisas
e assim, de repente,
num gesto de distância há um caminho de volta.

isto é chato
porque
o que uma pessoa gostava de saber é
a cor do mar na memória,
se há risos nos verões da infância,
se enxerga além do peso e a medida.
isto último é importante, por mutável
e empírico demais.

uma pessoa que é pessoa
detesta princesas e sabe que os olhos
pelos seios
deslizam como claras em castelo
vazias e perecíveis.

é por isso que às vezes
uma pessoa qualquer
numa tarde qualquer
de um dia qualquer
gostava de ser árvore.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

noiva

datas são memórias: entre as sete saias da noiva se esconde um pássaro vibrante e leve que desenha anseios e receptáculos. entre as mãos da noiva paira uma névoa, um canto longínquo, qualquer coisa entre criança e colo, avança e embala-se nos braços uma estória repetida milhões de vezes, e ela acredita, porque as horas passam e é preciso a sopa quente e o ninho, porque falam as avós e amanhece como antigamente, porque é outubro e a lua entra com chuva e os homens falam forte e convocam lareiras e aconchego.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

quem dera

quem dera um deus pequeno para contornar
a falta de fé no verbo humano
uma pele que soubesse receber
um corpo grande doutorado em praia e colo

quem dera uma boca feita em risos sem alvo
uma casa de homem ou um rio
onde deitar as armas e descansar as costas
das descidas, da chuvarada, do caminho

quem dera uma rua de mãos claras
dispostas a soterrar os ventos no olhar
plenas pela palma como um mirtilo à tarde
fundas como um passeio calado

quem dera uns cabelos trançados
que pelos cantos dos olhos telhassem a noite
varressem as verdades a caminho da batida calma
quem dera as nuvens sob o teto do coração franco
quem dera a brisa no verão, a água, a confiança

casas velhas

nós conversamos e as nossas gargantas discutem a curvatura do tempo ameno nas ruas onde as casas velhas se tornam amigos na hora da praia, do sol que nos fere a pele que lambemos com línguas pretas como asas enquanto o mundo respira só num esforço, essa diástole que nos empurra ao encontro dos outros, de pés a arrastar, as unhas encravadas na parede caiada, de boca em grito, nós, empobrecidos habitantes de uma biosfera enlouquecida que guarda a pior carta na mão de um mágico esquecido, nós, que já fomos deuses pequenos, cansados, como de sexta-feira à tarde, rígidas estátuas que convocam o medo e outros dejetos que afastem da verdade inefável da alma e o caminho do guerreiro, nós.

relento

ergue-se pelas pernas a dor
pelas coxas a dor
pelo rio do sangue a dor

concentrada no ponto onde morremos para a inocência há tanto tempo

não sentimos a pedra como afogamos o grito
dormidamente alimentamos o complô da memória
para preservar a casa branca do futuro
o búnquer das mãos aflitas pela beleza
esqueléticas de tanto acenar um adeus antes do início
escondidamente moles sob a película do medo
trementes do concreto
perdidas a correrem do lobo mas
loucas à procura dele
do castigo que sem saber pretendem
do dente de diamante a rasgar o ouro
sem sequer se lembrar da água
da correnteza
do sol e a vida lá fora

não somos amigos da lua
e no entanto
esquecemos tanta vez puxar da descarga do trovão
para acreditar piamente
na mentira
da porta fechada por outrem onde nos trancamos a fingir
solidão ou ira
a mentira
das nossas termas últimas
escondidas
convexas como o instinto
de morte
aguçadas até atravessar o espelho
e reviver à janela
as águas-furtadas à vida
o salitre
o riso
o relento

sábado, 1 de dezembro de 2012

mayo

se vierten los ojos como pensamientos oscuros, nada nos detiene ante el corazón guardado, ante las manos llenas de lava fresca, cada flor es una excusa para un tallo, cada risa una diana en el conjunto de las voces antiguas que nos cantan dentro, nos reman las entrañas, nos guían al epicentro de la estrella que pudo ser pero nadó entre nuestras olas y nos parió las noches y los días. se vierten los brazos líquidos de mayo sobre el verano y nadie nos quita las ganas de subir la montaña blanca, seguir al elefante hasta el comienzo, danzar bajo la mirada atenta de los ídolos gastados, fingir un tam-tam o una arena franca o una roca amiga en medio del mar, agarrarse a la soga del aliento dulce y nadar lentamente en una pregunta: te amas?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

fibras

rompem-se no caminho as fibras do poder

pelas ruas da mente antiga
ou o coração encurralado
estoiram
também
as velas dos oceanos escondidos

uma queda
um golpe
um corpo redondo que mergulha
e tudo se torna uma luz sobre as águas
um reflexo
uma lembrança espelhada que parte
o vidro das miragens
e torna a verdade tão nua
tão nossa
tão arma perante a distância ou o dardo
tão limpa do nosso poço interior

não há dano possível na torre
do terceiro olho
nem casa que abrigue o rancor
na terra da nudez

é liso o caminho de pedra do futuro
ocre o sol
verdes os campos

como deve ser

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

uma porta

deitamos cores como fogo ou areia nos olhos do outro

consentimos na força do esquecimento:
captar e raptar parecem-se demais e além das letras
por isso
não permanecemos mais do que um milénio escrito
há muito tempo atrás

não esquecemos os cabelos caídos a caminho
do comboio ou a escola
somos botões na casa da lembrança espalhados
no soalho da infância
guardados os corações no vinco do ódio
ou do amor
cada pérola um gesto congelado

esperamos porque somos fundos cheios
de conchas que borbulham desejos
fugidos  
afãs perdidos na fronteira 
da sétima onda e a segunda via que nos nomeia
sem mudar um ápice
uma vírgula
uma cor de cabelo que seja

somos cada fragmento de adeus na colagem
do fracasso
uma réstia de acenos calmos e olhos secos
um misto de promessas
e bolas de sabão
uma mentira com bilhete de ida e volta
uma porta.

domingo, 25 de novembro de 2012

horta dos deuses

é a horta dos deuses

a vida em degelo caule acima até
ao côncavo do tórax
que rebenta
pétalas

é um canal de rego onde abrir-se os dias
como pulsos
derramar a fruta do
tormento

para tomar as rédeas como cabelos
virgens e
saltar
pelas costas da morte

sem sigilo
sem bicos de fés
sem aula
sem rede

sábado, 24 de novembro de 2012

she things us



induz num estado de lar.

abrir-lhe as portas é crescer pelo vácuo, caminhar no púrpura até assentar na curvatura do tempo.

she things us when we think of her.

arrasta pela biosfera dos bichos mais ao rés-do-vão até estalar os ossos da gramática.

mergulher nela: ser sete cães a um posso.

não é lança em áfrica porque a terra é curta demais perante o mar amorfo do que corre pelas mãos, mole demais para lhe atirar coisas em ponta.

é bola de salão nas mãos que depositam o voo no olho

e calam

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

abrandar

abrandar.

perto é pelos olhos calados,
não pelas mãos ou pela língua.

é a linguagem
amuada
dos saberes longínquos,
dos cachimbos fumados no horizonte.


é a hora da água ida pelos anos,
meu amor,
a hora do vazio entre os segundos que defrontam
passados
onde não fomos o que éramos.

toca a andar pela berma,
o meio da estrada canta música arriscada,
pneus, travagens.

durmamos os corpos escondidos
as cabeças ao léu,
meu amor.

só por esta vez.

domingo, 18 de novembro de 2012

everybody hurts

caminhamos por entre as costas dos outros
com as unhas agarradas
aos passados
pequenos
que foram aninhando-nos entre as costelas
como andorinhas no verão

passam as chaves
as estações
as ferrugens
tomam-nos os pulsos perante os corações
castigados

é preciso o inverno
enquanto avançamos como as mãos do réu
entre as grades
presos pela chave do que já
fizemos
ouvimos
dissemos

é preciso o inverno
caminhamos frios entre tactos
quentes
borbulhas de ausência à procura do líquido amniótico perdido
atordoados pela luz
pelos ecos estridentes dos corpos
pelas arestas dos pulmões cansados
pelos olhos dos outros
a demandarem o que
não nos pertence
o que não podemos
atingir
mais

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

o que está certo

somos nos cruzamentos onde os sinais nos falam e espelham os nossos atos. cada serão, cada percurso é uma chance, um ponto de interrogação sobre o abismo do desejo. o que está certo nem sempre bate à nossa porta e mostra os documentos, mas chama-nos, ao longe, ao pé da árvore velha onde os avós dormiam a sesta enquanto as ervas completavam o seu trabalho de crescer e acariciar pescoços. o que está certo fala para nós com palavras embaciadas, por isso é preciso um ouvido à prova de nevoeiros, um coração quente, uma temperatura da alma em coesão com a língua. o que está certo raramente é morno ou seco; salpica-nos, queima-nos, afasta-nos do mole e tolhe-nos os dedos para deixar crescer as asas da vida.

dentro pelas horas

dentro pelas horas implosivas, no suor que escoa pelos poros dos segundos e os torna uma amálgama de desejos a caminho de buraco negro, coração centrípeto, sargaços que nos habitam as veias quando as lembranças se apagam e inauguramos os ventos das iras e as velas da fruta que não colhemos; dentro no gosto pelo último degrau antes da queda, o sabor do segundo antes do adeus, dos rebentos que se tornam flores como mãos entre nós abertas ou acusadoras, do céu ao inferno é um passo nos olhos, chovem promessas que se tornam barcos e o oceano nunca foi amigo do homem, por isso fugimos, corremos os estores, escondemos os lençóis que ontem clareavam e fingimos tudo ser fruto do acaso, a roupa estendida e o sol que não sabe amanhecer, aquela falta de jeito nos gestos, como se nada tivesse a ver connosco, como se nunca tivéssemos comprado o bilhete a nenhures, juntos.

sábado, 10 de novembro de 2012

saber quién eres



quieres saber quién habla por tu boca

no son tus héroes sino tus deseos

tus héroes son tus actos

tus mentiras

tus manos


quieres saber quién camina con tus piernas

como si esto cambiara

tus hombros

tus dedos

tus palabras escondidas


quieres saber quién eres

pero no será por tus gestos

o tus horas sentado

esperando la luz

como si existiera la llegada

como si fueras

como si nada


quieres saber quién eres

eres por lo que te dejas poseer

lo que tiemblas

lo que callas

lo que arrancas desde dentro

lo que te empuja a sentir sin recompensas


quieres saber quién eres

eres la noria

la escalera

la rueda del tiempo

la ventana


quieres saber quién eres

eres una hora

una piedra

un nido

una rama

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

praia

porque me pediste
uma praia

(sabias que podias pedir-ma)

porque eram horas
de cantar e o tempo saiu errado

porque a linha horizontal é
mais tendente para a queda
do que a falésia quando as mãos chegam
mornas
e o tempo põe de molho querenças
e desafios

porque houve dias em que não soube
se fazia calor ou sono
e houve apenas uma pontinha de sol através de uns cortinados
um sofá calado
como as sestas ou os pássaros de noite

porque houve portas e lençóis e ideias
descartáveis entre as partes idas do dia
e janelas com chuva
mar
fogo

por isso
e porque o tempo é circular
como a perfeição grega
e as grilhetas

é a vez de a praia falar


crateras

pelas asas da escuridão
sobre a pedra desabrocha o cúmulo
da paciência - a arte de

voar

por sobre as coisas
grandes, tão grandes que impossíveis e fruto
seco
do delírio ativo que encorpamos
louca-a-louca como a memória a visão que

enxerga o pequeno a meio da noite, os buracos

por onde o corpo se enfia na alma espezinhando
medos gastos pela memória, na hora certa
em que se metem as fés pelas mãos essas
crateras
de solidão onde os corpos ensaiam
uma
e outra
vez
como a cegueira
como a unha que se encrava
na carne quando há miséria a tintar os ossos
da indecisão
e a noite nos cresce
dentro e nos habita
como
um cacto
no
sertão

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

cubre

cubre

un manto blanco que sopla como
una brisa muerta
cansadamente reducida a menos
la nieve sobre ojos acristalados acalla como
emociones viejas

esos dedos como agujas
esos gestos de moho o acidez
antiguos verbos pastosos como
pintura al óleo en una boca nueva

en los huecos invisibles del blanco avanza
una brizna que

pequeñamente 

grita que lo que fue ya fue y el agua
viene del mismo lugar y la gravedad
nos obliga a pelear cada segundo
de vida en dirección al sol

a despegar las alas aun con
el peso de las plumas y el barro y desear
la brisa fría que nos limpie aunque sea
a golpe de estalactitas caídas del
cielo o invierno

terça-feira, 6 de novembro de 2012

brutal

Brutal a maneira como acordo para os silêncios da tarde. 

Brutal como lágrimas de riso. 

Cedo porque para o vácuo nunca é tarde. 

Alto porque para o roxo nunca há escada.

Fundo porque ao pé nunca chegamos
por dentro, 
como veia ou osso, mas envolvendo
os olhares, 
fazendo das intenções uma funda
ou véu que 
apenas inspire o tacto pelo som
de uma nota 
ou o cheiro de uma folha seca
em novembro, 
o mês do chão mole, da humidade
onde se cozem
o nitrogénio, as minhocas, 
as urtigas que nos obrigam a amar
a hortelã 
mais do que é costume.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

pineal

tudo à frente da glândula pineal, tudo atrás dos olhos, no ponto exato onde os corações ultrapassam a velocidade do som e da luz e compreendem que o espaço é a grande mentira, que tudo é uma agulha do além que se espeta no momento certo e cria o que pensamos ser um instante, a ilusão que atravessa os peitos para poder sonhar os tactos que nos fazem sentir vivos quando na verdade nos aproximam da morte das células no outro; tudo a viajar entre dois mundos, os céus que se perdem por entre as grades que nos separam dos esgotos para renascer à frente da ria, de um canal onde nada flutua porque tudo é alheio aos corpos que habitamos, tudo é sem pertos nem longes porque não existe a distância ou o apego além do sonho ou pesadelo que escolhemos habitar a cada instante.

domingo, 4 de novembro de 2012

coordenadas

não existe o fim, minha irmã. não existe além das costas e as correntes, os ossos, as espinhas e as estrelas de mar. não existe o termo, zénite ou prova final; há quem sonhe com fitas e flores e músicas, a toada do líder ou o veloz entoam a mesma nota que se finge cheia de significado, farta em sorrisos e olhos, e mãos que batem uma com a outra ao ritmo da soberba; não existe a chegada, minha irmã, ou o fim. não existe, todos os caminhos são circulares, as coordenadas da vida se repetem, os deuses sempre jogam, usam-nos como peões das suas horas perdidas e nós vamos nos encontrar um dia no meio do nada ou da tarde, tu cheia de louros e eu de pó, tão diferentes, tão iguais, no mesmo momento e no mesmo lugar.

sábado, 3 de novembro de 2012

babel

sabemos cómo el destierro hunde sus cascos en la piel. sabemos cómo las olas o el granito se conforman con sus destinos y se embisten hasta parir playas donde ayer soñamos habitar atardeceres y delfines. sabemos que no es el hoy quien nos rige, o el humo, sino las hojas que caen mientras deshojo este poema ante la mirada atónita de los que ignoran el signo de la danza. sabemos que no nos aturde la brisa sino el juicio, las verdades escondidas en el pecho agrietado, gastado a base de intentos y desoves. sabemos que no es el agua quien se cuela en nuestra sangre sino la rabia, la fuerza con la que la deslealtad interior nos empuja hacia el olvido, el odio o la nada que sentimos por el otro, la obstinación con la que nos afirmamos hijos de distintas madres, la devoción en la lejanía del tacto, la muralla de las palabras con las que nos mentimos todos los días posibles, de todas las maneras posibles, en todos los idiomas posibles.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

doma

ergo a mão e à frente dos olhos cinzentos galopam cavalos que engolem o tempo, entregam até às vísceras do poder de olhar sem entender, o desenho vivo de umas crinas que são beleza porque acompanham a equação perfeita entre a inércia e o desejo, a combinação dos músculos a salvaguardar a honra de se ser animal; assim, com todo o fogo, a imponência, a altura com que se é o próprio no momento certo, o maxilar precioso para nutrir os cascos que a custo deixam na areia um quê de esforço suave, a marca de aura do que nos é próprio. deixo no pé dos minutos o cheiro de vontade, de doma, de caça ao instinto para o tornar a maior das obras, para encaminhar o porte e o incêndio interior para a subtil porta do guerreiro sem apoquentar o coração, que é quem mais se afoita e arrisca ferver os lírios do futuro a cada instante.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

está tudo a cavalgar

está tudo atrasado, linhas, palavras, ligações. está tudo na hora perdida, espalhado nas quatro direções, está tudo a cavalgar o lombo dos mais de quatro ventos que governam o hálito que nos atravessa, tudo perdido pelos caminhos inconclusivos como romances de mãe. está tudo ausente nas minúsculas, afastado, cinzento de tanto caminhar à nevoeira, está tudo uma coisa velha entre os desejos que torna as dobradiças secas, gritantes, cantoras à revelia do que a alma pediu e não se soube dar. está tudo estendido nas tardes, na cama, como lençóis de casa velha, está tudo anacrónico como um carrossel porque não há como pôr em dia a vida sem palavras, sem linhas, sem folhas onde deixar um cuspe ou uma impressão digital que valha.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

varais

pegas-me pelos varais da força de vontade. não me enfio pelas tuas mãos, que a carreira é louca e o fim um poço. pelos dedos atinjo-te nas pulsações, és táctil como abacate ou cortiça brava, justo como o fim do dia, navegado por fumaças como um barco branco a atravessar o pântano; seguras-te nos verbos como ramos porque és povoado por areias movediças, paredes e viagens de ida e volta; acreditas no mundo como um prato porque as noites são frias e a canja quente, e assim deixas-te cair pelo bordo da vida, pelo abismo da promessa, sim, essa água que escoa sem saber para onde. sabes da existência de sóis interiores mas só num canto de ti os encaras, numa cave onde te guardas das estrelas e as fontes, tal é a necessidade de olhar para a luz e não ficar perante ela sozinho, nu e de joelhos. por isso encostas o corpo à árvore da vida, buraco a buraco os teus pés no tronco, mão a mão e é tão fácil seguir-te o rasto pelas veias da palavra, sempre acima, sempre em frente, sempre.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

no corpo tudo são maquinismos

é o voo rasante, as curvas com que das nuvens traz um vento louco, um furacão de folhas, uma torrente de pirilampos sobre os olhos, um reflexo de qualquer coisa viva e à procura no meio da noite que habitamos, corpos feridos, corações tolhidos por línguas afiadas e desejos mortos, seguro-me porque no corpo tudo são maquinismos e mal habito os ossos e os músculos se o sinto por perto; entra-me pelos pulmões como andorinha, agora sinto-o aninhar nas costelas o perigo de renovar votos de letras e cabelos; e olho para trás mas os dias não voltam e os silêncios são telhados prestes a cair sobre os meus ombros, prenuncio clavículas desfeitas em pó de talco, está na hora e rudes vozes que afastaram sóis calam e retomam o cachimbo, os grilos, o caminho de ferro.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

morcegos

são as horas, os temperos. salgas-me as noites porque nelas te entro pelo sono dentro, pela cidade fora somos morcegos a testar os limites do físico, as asas, esses artefactos, essas prisões tão perfeitas, atmosféricas; batizamo-las de chuva ácida e acreditamos que os olhos existem apenas enquanto lembrança da fraqueza com que nos encontramos, assim a cada sonho um degrau na viagem a nenhures que são as mentes nossas, ou então fossem as minhas mãos delicados cogumelos a crescer-te no costado, a florir-te as axilas como se te habitassem de sempre e só neste outono breve, nesta humidade onírica que partilhamos, como se houvesse o espaço requerido para embalar os adeuses que deviam ter sido e regressam porque as contas não foram acertadas ainda; viajamos ao fulcro do desejo por chegar e sonho-te, e os teus cabelos compridos habitam-me a sala branca, chegam apanhados num molho como nos meses são os dias, assim à toa ou bissextos e tão longe dos astros, e é preciso trançar, é preciso pentear para evitar que se tornem cabelos fugazes, cadentes às noites, apenas pensados para proferir desejos e morrer na minha boca, nas minhas mãos que trançam.

domingo, 28 de outubro de 2012

a casa

olhar para cima à procura do pé que foi, da luz que fugiu atrás do horizonte, o hálito e a escada branca, a beleza na estratégia do caracol, as cores verdes ou azuis em que um homem vê o rosto de uma mulher que ama, os corredores, as portas, os tetos que coroam os corpos à noite, os quartos onde apesar da luz acontecem histórias verosímeis, onde as vagas da vida se dissipam como o lusco-fusco, madeixas de sol pelas janelas, madeiras que deixam pegadas nos nossos pés como no fundo dos olhos, das mãos que tocam e não acreditam; e as flores, os lugares, a razão do antigo, os azulejos depositários das mãos tão amadas que é para ficar a viver nelas, a vida que sobe e desce, e volta, a torre sem marfim que sonha dentes brancos, os cabelos compridos que lá foram secos pelo sol na varanda, a água, o murmúrio das estações que passam, tanta terra atrás dos vidros partidos pelo vento, tanto amor em cada canto, tanta beleza para beber, tanto sangue para se ter, tanto olho para ver.

velejar

correm as horas e as folhas como pássaros que nos fogem das mãos, tu és um olho semicerrado que me lança um desafio, eu uma boca aberta a perseguir o vento que ultrapassa os telhados, há quem ria ao nosso lado, há quem nos olhe e nos deixe ser um sonho por um momento, há quem saiba aproveitar o vento e o frio porque a vida é um velejar os dias, encontrar ocos onde rir nas tardes e nas pedras, a vida é um cabelo despenteado e umas sombras na água, uns segundos à espera do vento mais certo, uma imagem que começa num convite espontâneo e termina numa festa sazonal, a vida são nuvens inesperadas numa poça, águas que saltar a caminho do incógnito, um salto de lado a lado da muralha ou uns corpos a espreitar; a vida, sim, é fraca e longa, e guarda nos dias frios os corações mais calorosos, os nossos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

segundo sol

desatamo-nos nas trovoadas, os cúmulos-nimbo espelham as almas inexperientes. tudo o que vence o sono é borbulha e espoca entre um nós que é reconstruível a cada segundo. tudo o que sobe pelas paredes que nos afastam do desejo é simples, concatena memórias e futuro, segura o tempo pelos pulsos, sobe os segundos como degraus feitos em pó, assim nos aproximamos das águas-furtadas ao passado onde se escondem agulhas, almofadas ou fonemas esquecidos, essa bijutaria entrançada nos genes, essa espiral ascendente que nos atrai ao poço de onde fugir, está na hora do bordo de pedra onde segurar as mãos para saltar ao segundo sol de onde viemos, as horas que no fundo saltam dele ao miolo que habitamos sem saber, essa espinha onde incrustamos memórias, pedaços de osso, musgo ou água, tudo numa sopa de emoções para embalar os atos, assim como lenços agitados à toa, sem ninguém para despedir, sozinhos, tão sozinhos.

http://www.youtube.com/watch?v=6PRLjGJRbPk 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

quinze eme

está tanta gente nas ruas. está tudo aberto, até os peitos. está tudo largo e ensolarado como as ruas em lisboa. está tudo franco como um sorriso velho numa tarde de verão. estão as ruas ocupadas com os corpos limpos, as vozes, os jeitos inverosímeis de quem caminha em círculo e nada sabe da constante áurea. está tudo pronto, ocupado, disponível o calor no espaço entre os corpos, os cotovelos, as costas que se juntam, nas ruas. está tudo tão obscuro que está tudo prestes a jacto de vida, a morno verbo onde embalar silêncios, porque os gritos ecoam mas não destroem as pedras dos muros que nos afastam da verdade. está tudo à mostra do sexto sentido, tudo oculto aos olhos simples, tudo calculado para alimentar o monstro sem cara que nos devolve o que somos, o que fomos, as somas do passado que se transformam nesta equação macabra que descansa corpos antigos e camas na rua, como se nada fosse, como se o suor nunca tivesse sido, como se uma árvore acordasse uma manhã louca e resolvesse comer as suas raízes, assim, sem mais, e comer das nuvens, nem que o céu chovesse nitrogénio e pedras.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

uníssono

a luta acontece fora das horas, nas frestas do olhar, nas janelas que se abrem entre as palavras, nas culpas mudas, essas figuras inertes que se transformam em setas ou flores em nós, esses ramos que evoluem para vide e depois pedra, essa montanha que se abre para parir dentes, idiomas, lembranças com cores e cheiros, sonhos crescentes como os rebentos do amor de manhã; é assim nós, tão humanos, um relâmpago o líquido em que nadamos e hoje a noite é bela de tão escura que junta os hálitos e os acordares imprevistos ao uníssono, como uma orquestra de inconsciências nos encontramos por momentos no aquém enquanto os corpos mentem como a escrita e há qualquer coisa como a música que nos convoca para daqui a tudo, sem nós sabermos.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

apesar da cola

somos de novo, e a cada pouco, pelo fio, pelo gume do caminho com que rasgamos o tempo e o espaço, pelas horas que são e já não são. somos fumo, bárbaros pássaros sem bico, aves pelos dias que já não chegam para a desfolhada que nos espera. há a faina e cada folha é um cadáver ou uma matéria prima, ou um asteróide do início, ou uma ave amanhã. tudo se divide infinitamente até ao mais íntimo do osso, onde pensamos residir, respirar, resistir ao assédio da distância perante o outro, onde cada virtude que nos atinge é uma bala que esburaca as costas e dessangra os propósitos, cega, de tanta vontade, assassina. as balizas que nos esperam não contam bolas: assim como no circo da vida, falta nelas a rede, mas não interessa, a vida é sentar sem querer e ficar a olhar e tecer sem fios, quem sabe um dia cresça lá uma teia de aranha onde as borboletas se reproduzam apesar da cola, do silêncio à espera num canto, da proximidade da morte.

degraus do adjetivo

Nada sobrou dos olhos; nada a memória dos gestos, a desolação ou o adeus. Nada me toma já pela cintura da dor, perímetro hoje voltado para o mar, os afetos. Trabalho as horas como palavras, trepo pelos degraus positivos do adjetivo, pelas conjugações mestras das horas, o tapiz do tempo e os seus atos que é tapete à porta da casa do amor. Há uma janela de onde olho para o presente, uma abertura que já foi e cresceu para porta, e para arcada no terreiro do paço ou porta de Alcalá, Arco do Triunfo. Ofereço a cara e os olhos pois os deuses foram sempre exigentes de nós, tanto como generosos. Enxergo uma praia ou um jardim, algas ou flores, festa de Iemanjá, um mar que é floresta e receptáculo de gratidão ou memória, pão ou peixes, água ou fogo, vento ou sede, tanta sede.

domingo, 21 de outubro de 2012

teoria da distribuição da água

tortura ou tontura, viagens de ida e volta na ordem de trabalhos, fausto e a descida, o regresso ao luminoso ponto onde os corpos de luz se tocam, se compreendem, se sabem mais perto do previsto e ainda bem, pois tudo o que é caminho é cheio de pedra e erva, água e sol, encosta e árvore; há os desertos, claro, mas o que seriam eles sem a savana; não fosse a distribuição da água tudo pareceria igual, e no entanto a terra é toda a mesma e o ar deixa-se beber em ambos e todos, dentro, fora, sístole, diástole, yin, yang, primavera, inverno, céu, inferno.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

peixes líricos

vamos pelo pé da rocha, pela mão da árvore, pelos olhos húmidos como almofadas nas noites de verão, vamos assim pelas horas azuis do amanhecer no norte, pela cor-de-laranja do adeus que dissemos ontem e hoje guardamos numa caixa para deitar ao mar junto com as palavras ainda mornas, assim, para alimentar os peixes da memória, aqueles peixes líricos que andaram connosco pelas ruas sem ninguém saber que por cima das nossas cabeças eram marés e agora é um céu aberto, limpo, aonde ir buscar nuvens ou cheiros, planetas ou aves, gente vinda do futuro que seremos, purificados na lama das paixões, apenas anjos perdidos a meio do caminho, as asas cheias de memórias e músicas embarradas, tudo para deitar fora até encontrar o esqueleto do tempo, o caroço do código nuclear, o que já foi e só está à espera de chegar ao ponto de partida para nascer à morte, ao ser.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

as covas caladas

partir as pernas da confiança como um soldado romano as de um crucificado até os ossos do coração se ouvirem em estalo ao pé da estrada ou no meio do mar; deixar o coração vago e sangrante como um rio moribundo, como um trapo à mercê das mãos que se anunciaram cheias e mostraram dois buracos negros onde engolir o cálice sagrado da intimidade; partir para longe do dentro e não deixar de sentir como o ventre se rebela contra as lembranças, como nada resta senão a vontade de abortar sonhos, como um rosto ou um corpo ou uma palavra se interpõe entre o coração e a alma, como custa manter a porta aberta e desafiar o frio do inverno que se anuncia nas covas caladas do que um dia desejamos, talvez a carícia ingénua, talvez o gozo sem cobrança, talvez só uma verdade nua no meio da neve a aceitar a queda, o frio e o vento num sorriso frontal, simples, derramado sobre os ombros em sinal de dar, em som de luz, em sol de paz.

parar

à beira do rio gasto, às portas da menina, dançar em voltas, sem encostar, girar sobre o superficial: a minha estratégia é fugir para a frente mas com os calcanhares do passado, no encalço do que em mim não atribuo: mãos com dedos, discurso, tacto ou coisa que valha. segue-me a rua, o pátio, o chão frio do licéu ou a madeira da barraca, ao silêncio ou a rejeição em troca das boas-vindas, o caminho de volta para casa a pé na chuva ou no sol; na orelha sentado o rosário de proibições murmuradas sem domingo, o martelo do juiz , o medo, o lacaio do tonal, o olhar torvo ao interior, as nuvens no rés-do-chão, o nunca mais chegar a um local que não existe, guardar esse lugar que não possuo e ao mesmo tempo me pertence, derreter o paradoxo, chegar ao ponto de partida sem sair, chegar a ser o que já se é, algures,  atingir o trampolim para o salto interior, a aristotélica passagem da potência ao ato, da ítaca sozinha ao caminho, pois é por ulisses que ítaca é ítaca, e vice-versa; assim, como um abutre dar voltas e mais voltas como num cemitério onde os túmulos são as estantes com objetos vácuos, onde a memória é o castigo, a amnésia é a condena, o futuro uma nebulosa e o presente já se foi. girar, girar e parar no ponto exato onde a única via é avançar. às portas da verdade, servir o medo da escuridão e parar. para dar o salto.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

vinco

vinco-me nas margens que são os lábios para acordar do sonho ou pesadelo, nesta falta de água que comigo amornece cada dia saltam as peles como os passados, as palavras por dizer, os beijos, as falhas, tudo o que nos fez espelho e foi golpe que deu vida ao presente; vinco-me para saber que estou acordada, que o sono não tomou de novo as rédeas e a maia cega os propósitos e os verbos; vinco-me porque entre nós deve sempre haver o tacto mas há dias em que tudo é tão longe, tão impossível, tão obscuro como o bréu dos corações salgados como o peixe, secos como uma rês morta no sertão; vinco-me para acordar as horas para a esperança, para apelar ao gesto dos olhos limpos, para sorver o que resta de vivo na pessoa, em ti, em mim, tão bárbaros, tão vivos, tão angelicais.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Tudo é iluminado

A coisa mais iluminada são os cúmulos-nimbo. Pela gordura deles nos escorrega a chuva, por ela a nós encostam as flores, os anos antes delas. Projetos de pétala batem na janela, atiram-se lá de cima para parir a transcendência em modo pianíssimo ou em concerto grosso, vidro abaixo, abeirando à parede, na festa do futuro que as pessoas comuns amaldiçoam porque não sabem que da chuva da janela vem o pão que põem à mesa, e da erva que pisaram, o ar que respiram.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Canción del guerrero V

Soy mujer; camino descalza por las hierbas, por las piedras viejas del camino. Dicen que una vez este camino fue río. Soy mujer; temprano, desciendo la ladera, pruebo las aguas donde renuevo nuestras ropas, nuestras pieles. En este río lavé a mi recién nacido. Soy mujer; regreso por la loma, la ropa en la cabeza, mi hijo a la espalda. A veces, me paro a descansar un poco. Me siento, vuelvo la mirada sobre el valle. Las recias rocas me parecen mi hombre. Los árboles ondulantes, mi madre. A veces, las nubes parecen frutas, o animales. Soy mujer; miro de nuevo al suelo, sigo adelante.

sábado, 13 de outubro de 2012

dedos

olhas-me e lábios em sopro brotas uma palavra que se enche como o vaso com flores que transborda, sobre mim caem girassóis e o tsunami que percorre a mesa numa pressa louca por lamber-nos os braços, vaga que nos desliza pelas mãos e explode no chão salpicando-nos as pernas nuas enquanto nos olhamos, assim nesse arrepio de junção, a água fresca nas roupas e os dedos que se tocaram apenas um segundo; e a dúvida, que arrepio foi primeiro, o da água, o dos dedos?

Intervalos I

Ser feliz
é a arte de borrar os limites da memória
e resgatar as cores de entre a negrura.

Aprende-se,
nada tem a ver com os factos;
é um calor que eleva os tornozelos
e se enreda nas mãos que abraçam instantes.

É um caminho
uma ponte, uma congosta, uma praia
onde estendemos as conquistas
sem darmos pela proximidade do mar,
pela maré que sobe,
a onda que nos gela os pés
arrastando conquistas, roupas, sorrisos
tudo o que julgávamos ser,
o que pensávamos sólido e foi volátil.

É um ato consciente de inconsciência,
recusar-se a contemplar o desejado,
uma insurgência da memória,
uma deserção de cobardes que nos purga
e nos deixa a fragrância do futuro.

É irreconciliar-se com o leito da desgraça
do que somos, não do que vivemos,
do que desejamos, não do que já temos.

É virar as costas ao lamento
e entoar o canto do ar que nos açoita o rosto;
é também precisar de uma berma, um jardim
crescido à margem dos caminhos quotidianos,
um pé descalço na altura certa,
uma certa memória, um certo esquecimento,
uma toalha para secar as águas do passado
e uns dedos ágeis que libertem as correias
que nos atam às malas que arrastamos.

Ser feliz é a arte de se demorar no efémero,
de esticar o tempo nos lábios da memória,
de estender o riso no tempo intercalado,
é o ofício de entrançar os fios do sangue
até lograr um tapiz inesquecível, porque
a felicidade habita os intervalos,
nasce enquanto toca a campainha,
cai-nos do bolso no recreio e sara
a memória e os desejos,
as mãos gretadas, os gritos, os medos.

O riso é uma pétala um segundo antes de cair,
um instante de beleza derradeira,
por isso as virgens colhem rosas
e as mães se demoram nas carícias.

Para sorrir é preciso ver,
é preciso compreender que os versos se desfloram
como as palavras caem do céu nas madrugadas
e assim de manhã os risos povoam a geada
para fazerem crescer a erva dos serões.

In Livro do Riso e a Memória, inédito.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

camino

Camino. A veces me pierdo. A veces me encuentro. Más adelante, en el cerro. Más arriba, en la montaña. Más abajo, en el cañón. Más adentro, en la cueva. Más callado, en el silencio. Más agudo, en el do. Más claro, en el rayo. Más oscuro, en la luna. Más lejos, allende. Más cerca, en mí. Más brava, en el pecho. Más cobarde, mañana. Más valiente, ya. Más alta, la nube. Más baja, el polvo. Más con, el otro. Más sin, ego. Más duro, piedra. Más flexible, bambú. Más áspero, verdad. Más suave, flujo. Pero camino.

que nada a fugida

tomo os pés ao de leve e sou corrente na água fria de agosto ao norte, pelos peixes que não oiço me sinto numa costa afastada, a dor é uma faca e o sangue corre como o arrepio até ao esterno, um dominó em queda ascendente até aos ombros, que nada a fugida, não, mas o vento a assobiar nas costas um nome de pedra ou vidro à nuca, um barco ou uma maçã que se fica pelo bordo do corpo e abre um sulco ao peito assombrado em frutos, sim, e limpo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

varanda

é preciso ser pelas tardes da varanda, porque nela se sente o golpe do adeus calado, o gole de chuva que nos acorda para os ciclos, a breve estadia dos corpos. nunca se repete a cor, e no entanto todos os dias entardecem. é preciso dizer que somos água pelas paredes ou pó pelas estantes, pousio breve em que as horas se delatam taimadas como exércitos de gandhis, ora calando no sorriso da loucura que habitamos, ora sendo prata como o mar nas férias, ou rua como as cidades velhas no natal. é preciso ser anta como roseta, nuvem ou janela, tudo no embrulho das águas, porque nos dias breves em que os rios crescem nascem deusas e as montanhas transparecem ventres enquanto nós, condenados ao fim, nos atravessamos do efémero até ao enlevo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

hortênsias a secar

não te deites sob os lençóis da ira. encosta o lábio ao perdão, não existe cama onde o vento não espalhe as mornezas do amanhã apesar do frio de ontem. pensaste ganhar, e talvez até algumas migalhas caiam no teu ninho fora de horas. mas tudo o que pelos andares da noite se torna água escoa dos sonhos e faz crescer cactos e invernos. tu ventaste o passado, setembro foi fevereiro e cá se fez o sertão no músculo íntimo, na cama lilás cresceram cactos e esqueletos, os teus pés desencontraram os meus porque andavam atrás de alvos gastos, tentaram a hera pelo muro, as janelas, a cozinha até desconseguirem o sonho, atravessados por um mar de gelos, mentiras e livros vazios. enquanto isso, o tempo passou e eu tinha posto as hortênsias a secar. por isso, agora, tu já não és e na cozinha a beleza ocorre num bouquet cinzento-lilás que se forjou caladamente enquanto a distância nos ia acontecendo.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

fomes

os degraus do tempo crescem baixo os pés dos mortais enquanto as teias do tonal crescem sobre as almas e as envolvem na mais secreta escuridão, na mais obtusa das memórias, no mais perverso dos jogos, que é o xadrez da vida, a matriz de cálculo perfeito onde nos movimentamos como cobaias, felizes cachorros prontos a ser vendidos a um amo que confunde amor e posse. enquanto isso, as palavras jorram por entre a saliva, por entre os dentes e a língua sem licença e encostam às paredes porque são palavras cansadas como anteontem ou hiperbólico, tudo num bípede turbilhão de sístole e diástole que se desencontram às noites e esbarram ao meio-dia como o sono não dormido ou a vigília indefesa perante os monstros que nos tornamos, perante a luta em que abrimos o dia para arrancar um sorriso que seja ao empregado de mesa ou o carteiro, porque há tantas fomes como pessoas e tantos sonhos como corações.

Zeus numa mortal

O coração teu serão os meus braços longos e brancos como o verão polar. Agarro-me a ti como mexilhão à rocha, sou grata à ira do mar que nos une. Permaneces calado e expetante como uma estação enquanto eu passeio os olhos pelo cais da tua nuca. Oiço uma voz dizer: beijo número cem, cais do peito; beijo número mil, cais da fronte; beijo número cem mil, cais da boca. Passeio demoradamente pela calçada tua, como só um andarilho. Sou ave - voo por cima do teu teto de vidraça e a tua paisagem é-me estranha e familiar como uma viagem sonhada. Cresço no teu fôlego e sou tudo o que te olha sem ângulo, o olho que és, em redondo, à tua volta, o receptáculo do pensamento teu, tu absorto na beleza de uma teia de aranha ao sol enquanto te penso, te invado como um bafo leve, finalmente possuo-te e em ti assento como Zeus numa mortal.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

guardabosques

O corpo da mulher caminha-se pelas bermas. Sofre-se como procissão de joelhos pela estrada, pelas pedras, até ao altar onde depositar as flores da nossa fé. O corpo da mulher não cabe nas mãos de um guardabosques, não entra pelas portas de uma casa velha, não sobe pelas encostas da fome. O corpo da mulher enrosca-se como a hera pelas frestas da vida e assoma flores pelos buracos mais inesperados, sejam eles as horas da noite, uma toalha branca à mesa do almoço, um cheiro a orquídea nos lençóis. O corpo da mulher é florido, é pomar, ramo que pelas grades fora se estende e alimenta o vizinho distraído; fruta que pela casca se desfaz e no solo enxerta uma vida nova, assim, como quem canta ou assobia ao varrer as folhas do outono. O corpo da mulher é uma verdade que salta pelos contornos da altura e o comprimento e voa ao futuro onde se recolhe no amor dos frutos e as lembranças.

domingo, 7 de outubro de 2012

conjuro


Me siento a descansar junto al camino, a la sombra de los que se han sentado antes, los que se sentarán después. Hoy te escucho. Te conjuro entre los matorrales, como una piedra gastada o una hierba simple. Te sé grande, te sé en lo pequeño. Con mis recortadas manos abro paso en las hierbas comunes. Hoy te encuentro en las piedras ardientes del mediodía, te escucho hablar en forma de lagarto al sol, tu rastro. Hoy eres el silencio que mueve, la materia oscura que sólo en virtud de su efecto en los otros se adivina.

Paris

serei eu quem espere na beira com a tocha pronta para te acender sobre as vagas que nos consumam, será uma mão minha que te conduza até às minhas trevas, a caverna onde femeamente te espero desprovida de história ou pecado, serás tu a atravessar-me como o rio e eu serei a mágica que caminha as pontes à tua espera, calma ou aos gritos de ti que és tão cheio do que dá para ser e o que nunca foi, em mim, tão enchido da falta de mim, que em mim virás ao mar e eu serei a guardiã das tuas águas interiores derramadas para gozo das ninfas e os centauros, Paris que sou de ti, porque te espero em luz e torres e arcos do triunfo, colorida e transparente à espera do teu corpo franco entrar-me pelas ruas da saudade, pelas pontes de Cortázar até ao Sena.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

tempos idos

pelos trilhos ínfimos onde acontecem as verdades maiores, pelas rotas pedestres onde as pernas fraquejam perante o olhar do outro. pelas abas da montanha onde os monges se tornam cavaleiros e vice-versa, pelos rochedos onde os diabos que habitam o céu nos esperam. pelas correntes que atravessam barcos, fantasmas e lendas, pelas redes que se arrastam pelos mares infernizando golfinhos, arrancando algas. pela estrada lumínica onde encontramos o verbo em sumo, pela congosta onde os sonhos anunciaram tempos idos. pelas batidas do vento que entre as árvores fomos, pelas estrelas que nunca houve sobre nós.

tão escuro, o antes

livro: livre, para nunca ser possuída, só procurada, diz ela do além das coxas, da fronteira dos lábios, o espaço limpo à volta, essa bola de sabão, leve, de leveza e de levar. ou então: deixe. deixe ela caminhar no silêncio, mulher é passagem, alta-o-fogo, meandro a evitar choque. ele: olhos, mãos. início, força, sentido. o que poderá, formulação, hipótese, gérmen, intuito, primeira direção de uma pupila que procura. caça. casa. calma, à tarde. evoluir para mão morna, dedo que já não vinca a página, mas saliva iniciática, verbo pronto a mergulhar nas águas dela, salto, envolvência, lançar o hálito até atingir a sereia e embalar o frémito submarino, tão frio, o fundo, tão escuro, o antes.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

curta idade dos abraços

redunda-me a água que tudo se resolve em adeuses bravos, leites derramados sobre a ferida aberta, um coração abre-se hoje e amanhã é o grito que não parte, que se fica pela garganta seca, pelos olhos hirtos, pelo rosto incrédulo. nunca temos tempo para aprender a derrota quando ela vem pela traição, chega feita abutre e lá foi o nosso sonho, quem diria aquela borboleta se tornou urubu e desgarrou as entranhas da montanha branca, os silêncios, aquela barbárie incógnita, aquele roubo taimado, aquela vitória sobre o nada que se julgou viva, a curta idade dos abraços rendida ao espetáculo do ocasso mais atroz, a cobiça, o cabelo branco e as mãos ainda com tanto para dar, e mesmo assim não ceder ao medo de deixar a porta aberta, levantar-se perante essa batalha última e sozinha que acontece dentro, e não ceder nem um passo à frente da descrença.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

dias como gomos

se as palavras fossem prescindíveis. no fundo, na superfície, o poema é a fugida, a cambalhota a procura do além. escrevo para rebentar o tempo pelas costuras, como quem pega na vida arrastada do passado, borborigma até parir dias como gomos. se o mundo fosse um fundo de oceano atravessado de uma lentidão que torne tudo tacto, líquido acariciando ombros, ondeantes os cabelos e os gestos. mole, afinal de contas. detesto as arestas, fujo sempre à questão, porque a questão no fundo é a distância, a fossa que nos afasta. escrevo para esquecer que a matéria é breve e os corpos são impenetráveis.

milho

Aspiro-te no cheiro dos bichos. Estudo-te juntamente com abelhas, libélulas e pirilampos. Há dias em que me pareces uma borboleta espalhando pólen pelos pastos. Ontem, eras uma pétala a descer o rio: deixavas-te levar na correnteza num quê de criança que olha o mundo do carrossel e tudo acha mágico e belo. Hoje observei-te e o teu corpo artrópode parecia um grão de milho. Vinha a água pelo rio abaixo e atiraste-te ao meio das gotas em gentio: eras música no canal do moinho. Uma criança acordada tomou-te na mão e pelo buraco da mó de cima em dança foste farinha, amanhã serás pão de milho que mastigarei deliciada sabendo-te preso aos meus ossos e membranas.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

ahora que el agua

ahora que el agua trepa las paredes de los cráneos
convertidos en macetas
nada nos separa     nada nos une      nada es     todo es mentira
quién ha dicho que mañana va a llover
los lunes crujen porque siempre hace frío al regresar
no nos alejamos del pasado sino de lo imposible
no queremos ir al mar sino abrazarlo
y no llorar cuando se nos escurra entre los dedos
hay una brújula orientando al oeste donde todo es enterrable
donde nada nos juzga
donde podemos aplaudir lo cotidiano los despojos
el olor a frito y a cuarto de baño
donde podemos gritar sin esconder lo feo
permitir al otro ser lo que es sin eufemismos
no me quieres pero no importa yo tampoco
me quiero y
así seguimos por los siglos de los siglos a pecho abierto
preguntándonos quién has sido dónde he estado
porqué nos acercamos para hacernos daño

culto de pequeños ruidos

tú desdientas las memorias mientras
yo paseo por mis manos una manzana
nuestras verdades míseras desnudas
amarillas maravillas
curvas de silencio que pulen las aristas
de esa nube que podría amenazar lluvia
de piedras y palos pero riega un suelo
donde a veces crecen flores impensadas
no te peso no me mides
nadie espera todo se reduce
a un culto de pequeños ruidos
los segundos discuten sobre nosotros
mientras el sol nace y nos ilumina
las manos aún calientes aún envueltas
en el último sueño
que me cuentas

Vénus às segundas

no mar somos pares, pescadores, sobreviventes da noite e do desejo e assim tu és corpo que ara e eu terra que aceita, tu ferramenta que cava e eu rego onde plantar semente para depois voltar à tua boca de pão de broa com passas, nozes e leite quente, nalguma parte do meu corpo escondida e renovada cada dia, na branca pedra de Vénus às segundas, nas teias do ventre aos domingos, nos bicos dos seios ao meio-dia; e se, meu amor, tiver uma casa onde te esconder, uma água onde gozar, seria térrea ou quinto andar? poça ou baía para nadar? seria morna baía de ti onde mergulho até tornar-me água e sentir-te fundo habitante do meu mar ou entalado areeiro do meu corpo como amêijoa ou ostra minha até ao tutano?

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

fala

fala, amor,

como eu te beije? na dança das serpentes, no riso? e os meus lábios, por onde entrem? pelos cais dos sussurros, por qual dos seis sentidos? hei de beijar-te o riso na dança da serpente? meu corpo acordado, e meus dedos longos, que façam? remos da piroga que te sulque, caules de um bouquet de flores? povo na terra tua generosa? no baixo equador dos meus lábios navegáveis, por ti em barco ou piroga ou nu e a nado? e a minha língua, onde aporte? nas Índias dos teus temperos? na proa do teu corpo em caravela? posso prevenir-te das vagas que talvez te acendam as velas e as delícias? das cavalgadas onde sejas os meus pés na tua terra? naquela terra onde eu sou criatura de fruto efémero e boca dormente, onde te guardarei a colheita? no colo das coxas, na poça da fronte? nas borboletas, porque nas asas delas voam as palavras escondidas? nos desejos guardados na saliva, as línguas de espiral despregáveis até o fundo das entranhas minhas? ou nos prados das línguas, sumos de cereja, portas entreabertas quando te aproximas, por onde te espraias nos sentidos a cavalo? nas horas extensas, nos minutos, nos fogos-de-artifício, os mares ou os rios?

fala, amor, 
 
de entre todas as palavas e os segredos, com quais devo conduzir-te à rendição: pólen, cerne, mastro, vento?

pêssegos

eu olhava para ti e diza: e os pêssegos, também amas os pêssegos que colho no verão? do nosso amor simples como o mês de agosto, cheio de vindimas e açúcar colado às pernas, os lábios, os cabelos, dividimos os pêssegos pelas mãos e pelos corpos e assim ora escorria o sumo nas tuas costas, ora tu bebias uma pinga na poça do meu umbigo, um dia foi assim, porque havia tantas frutas, meu amor, e éramos tão jovens e tão viçosos na vontade de amar.

jogo de forças

não entres pelos cantos, não como um ladrão. não espezinhes os passos do passado, os tactos. pelo que deixaste de ti nas minhas mãos, ficam os dedos tintados de substância óssea. por isso, não entres pelos cantos, pelas frestas, por baixo das portas fechadas. é a vez de o ar passar. é a sina dos aprendizes. não te tornes pedra, que pelos olhos jorram tempos futuros. deixa-me ser colibri, a quietude é o jogo de forças mais perfeito. o teu leme virou para águas obscuras e eu desaprendi a ser lula. não me alimento de fundos ou dejetos. não me puxes das pernas, que mais pareces um náufrago que arrasta em vez de nadar em direção ao sol. salva-te, se podes, que eu já cheguei ao porto e nada me é mais belo que o entardecer e as bolotas em outubro.

domingo, 30 de setembro de 2012

Alejandra

Nada lhe era pelas noites ou pelos dias, apenas as palavras viradas para um adentro, um lá muito fundo adentro e baixo, onde aconteciam tubarões e madrugadas, vulcões e unhas roídas. Os seus diários mais deviam ser chamados noitários, pelas horas, pelas palavras, pelas zonas obscuras que emergiam entre as linhas deles. Ou então certidões de óbito muito adiantadas. Pouco mais sabia do que da morte e o sangue. O olhar era turvo, os cabelos desleixados caíam sobre os olhos e era aí que as mãos se levantavam num espavento inconformado, os olhos piscavam como lanternas fracas no nevoeiro. Ela, sentada perante as páginas brancas, perante o vazio que dela exigia mais e mais. A página branca era não um convite, mas uma imperiosa ordem de vazamento. Tudo nela era ela, espiral centrípeta, golo que engole o próprio sangue, o cuspe, submersa num gosto salgado de mar reduzido em fervuras sucessivas, amargo e denso.

sábado, 29 de setembro de 2012

pedras como amêndoas

há em ti qualquer coisa que não se segura. qualquer coisa frágil que pende como um candeeiro enorme, e ameaça cair em cima das almas distraídas a contemplar a beleza com que te trabalhas. nada cultuas que não leve ao êxtase da ternura, talvez uma vontade antiga de ser avô e calar o choro de um bebé, ou ouvir um pássaro e saber o que ele festeja ou anseia. tens pedras como amêndoas para olhar às tardes, e nada nem ninguém te afasta dos odores de um jardim cheio de grilos. és nas noites um pirilampo que, no ciclo do que lhe é essencial, alumia porções de ar, folhas ou aranhas. arrastas pela terra preta palavras compostadas, feitas em líquido fresco ou pasta, gotículas de voz que encostam às ervas, e se escondem como bichos na barriga das pedras para saltar às nossas mãos e corações quando as tocamos.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Ch'ien

É mais pela flor que te revelas início.Ch'ien em nós foi decisão certa, inspiração tua, semente de ti; assim por todos os dias e noites a criação nos respira, dentro e fora, sístole e diástole do verbo. Ainda durante a noite o nobre cria e recria a palavra amassada da matéria onírica que é a mátria aonde regressamos. Não me elevas pelas costas da vida, pela baixa da cidade, mas pela frente do belo, pelas lombas das conchas, pelo caminho da reverência ao ínfimo, a farinha de que somos feitos pão levedado na madrugada do verão para desjejuar as almas, maná dos tempos que nos vêem passar os versos e as batidas, os espasmos do esterno, a emoção desventrada pela beleza exposta sem escrúpulo, nua, desgarrada e nossa.

canción del guerrero

No engaño los caminos por donde discurre la voz del tiempo. No sueño con palabras grandes, esdrújulos pensamientos. No me toma la vida en un metro brillante y nuevo. Mi paso es el del gusano, hecho a su medida, para su sustento. Bello para el creador; a ojos del ignorante, feo. No huyo por la cascada para esconder mi sombra en un agujero: soy la sombra, el lado oscuro, los surcos sucios entre los dedos. Huelo a tierra, a agua, al fuego que calienta en invierno. Camino descalzo y desnudo por los cerros. No transacciono, no busco oro, lentejuela, cetro. En la hacienda siembro como esclavo, sólo yo sé que no tengo dueño.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

talking to an angel

desata-se a tempestade. pássaros que te habitaram fingem que é outono e migram; olham para mim, dizem que mudei as estações... olho em volta e procuro os restos das asas, as penas almofadadas do queixo encostado no peito. calo, deixo setembro tomar conta. ele é que sabe de luzes em descida, de bolotas e folhas que estouram como granadas para nutrir a terra em março. quis ouvir-te mas temos os relógios descompassados, falas em janeiro e oiço-te em agosto, venho pela praia do riso e tu tomas conta da montanha branca, agora tinta de saliva, líquido esquecido entre os lábios secos de manhã. quem quis ser anjo? não eu, I wasn't talking to an angel, so sorry I wasn't talking like an angel... qual anjo, qual música, qual adeus, qual silêncio a não ser o da entrega, o café de manhã, a janela onde pintar, a escrita, a enchente, a beleza, o gesto que acolheu os olhos, os braços abertos até à entorse dos seios, a memória.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

somos

Somos pelo que caminhamos entre as ondas, pelo que de nós surge no meio da tempestade, náufragos, corpos vivos e salgados na beira da praia. Somos porque sei como olhas o mar à janela, e nele eu me mostro para ti uma incógnita. Uma pergunta cuja resposta és tu próprio. Somos por entre as correntes, somos em essência a aprendizagem após o ciclone que nos abalou, que mostrou as nossas fraquezas, essas que aceitamos para amar como na rosa aceitamos os espinhos que a protegem. Somos porque há em nós o poder de os deixar cair e tornar-se uma rosa mais simples, doce, dadivosa. Somos porque todo o soldado volta para casa e sabe que no frenesim da batalha tudo é confuso, e por isso é preciso viver em paz e fazer o que é devido. Somos porque entre nós houve nuvens e pássaros e horas simples e corpos abraçados por horas, suores, lábios, líquidos mornos onde nos deixamos embalar. Somos porque para aceder à montanha branca é preciso esfolar os joelhos, as mãos, os pés, que se tornarão no mais precioso de nós, na dor que prove o nosso esforço e o direito ao paraíso ao chegar ao cimo. Somos porque o caminho certo é sempre o mais difícil

hombre en el cerro

Entre los ojos de mi hombre se yergue una verdad.

Mi hombre no merece el destierro, sino el alma. Cada mañana se levanta y en el eje de su voz proyecta soles y lluvias que limpien el aire viciado.

Mi hombre es simple. Sabe que el viento es la sombra del agua. Disculpa a la lluvia por ser mensajera, a la nieve por ser blanca.

Mi hombre es sabio. No busca: su unicornio lo encuentra. Cuando lo cabalga, la tierra se apresura y brota yerbas y limos que ablandan su senda.

Mi hombre tiene dos manos. Una para la belleza, otra para el ánimo. A veces, los juegos del agua lo tientan. Pero él no es ganancia, no es pescado.

Mi hombre sube a los cerros con el paso breve y la mirada baja. Nunca los astros lo han deslumbrado. Cuando el sol afloja, osa mirar a lo cercano. Quizá una flor, quizá la arena que ha pisado.

Mi hombre regresa y trae centeno. No entiende de molienda, ni sabe de campo. Pero conoce el valor de cada grano.

pelos campos impensados

pelos dedos da terra sulcada a rítmicas braçadas, pelas poeirentas tardes ao pé do mar e as estradas, pelos sonhos e as florestas atravessadas, pelas cicatrizes que a infância confere como dote para a vida adulta, pelas insónias também plenas de oxigénios, pelos coutos rodeados para evitar os epicentros da fraqueza, pelas lagoas engolidas no peito que se tornam poço de palavras. pelos campos ainda impensados, implantados, insubordinados aos cantos de sereia, pelos ares que não esperam o vento porque o sabem breve e inconstante. por este agora bordado com flores, cores e palavras.

engenho

pareces-te com as pedras milenares: passam-te ao lado batizados ventos de mudança e tu sorris e permaneces: sabes que os ventos não vêm do sul ou do norte, mas da dança do sol e as águas. e sabes mais. sabes que os moinhos obedecem ao mesmo engenho: querem pão. pareces com os calhaus dos rios: correm-te pelas costas as águas claras das torrentes, nelas deslizas, corpo rombo pelos anos caminhados, por entre as ervas e as algas, e as mãos das mulheres que lavam a roupa.

poesia

ela é o caminho da verdade revelada. a estrada da realidade última da criação, a génese onde tudo é possível ainda, longe desta estrada quotidiana que os nossos corpos atravessam a custo. a vigília que comanda este sonho obscuro dos ossos e músculos, pedras e dejetos. todo aquele que a habita vê pelos seus olhos, e assim, para ele tudo é mais intenso: a mentira tem os olhos mais escuros, a mesquinhez deixa a pele pegajosa e densa. mas também a verdade resplandece como uma esmeralda, a simplicidade é uma religião, a beleza o pão de cada dia.

quintal

é assim que os dias se passam na nossa casa. alguns deles, no barulho das panelas escondo o silêncio teu enquanto crias uma palavra nova. hoje, por exemplo, fui abrir uma janela e lá tinhas afixado um beijo d'ob ra. não que me incomode. a poesia tapa-me o sol dos olhos e assim posso sentir a palavra e o camélio do quintal. não fosse a tua pegada, estaria agora a franzir os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a poesia viva.

molho

chamo-te pela espiral que te mantém sentado sobre as termas, sobre os túneis iniciáticos, horta de framboesas, quinta da regaleira, devagar lanças a brisa na palma da tua mão e uma bola de sabão é palavra sossegada que cai na minha boca; assim me ofereces o orvalho e a geada e os ventos do sul atados num molho como se fossem ervas simples; assim me inicias nos segredos dos ocos teus; assim te me apareces em forma de gato sagrado, ou de cavaleiro ou de águia ou de barco, calmo, ao sabor das ondas navegado. não temas pelos nomes dos deuses futuros, sou pajé na aldeia dos teus trilhos, sou mercúrio, sou xangô e é quando pronuncias o luar ou a espuma do mar que te compreendo além do âmago e te abraço.

mundo

eu sei que não pertencemos a este mundo, por isso pertencer-te me é mais próprio que pisar o chão ou enterrar os dedos na terra para sentir que continuo viva e posso desfolhar as flores à procura da tua resposta afoita. um dia o sol passou por trás da lua e tu disseste: que nada me é mais perto do que tu; e tomaste-me a mão e nela pousaste o sol e a lua, e eram os dois tanto calor e tanto frio que só pude lançá-los ao voo e torná-los uma gaivota que no verão acode à tua janela e vigia o teu olhar sobre o mar, ao longe.

procurava

tanto te procurava, que às noites enveredava pelo bosque a que pertenço e sussurrava o teu nome nos buracos dos grilos; da minha boca descaíam flores e folhas e rebentos que outros viajantes tomavam como suas, confusos que estavam de me encontrar assim, perdida à memória do teu nome, perguntando-te por senhas aos bichos, sentando-me nas pontes para ver se passavas no rio igual a uma folha no outono; barulhos estranhos soavam às minhas costas, virava-me eram as armadilhas de Adão à caça do seu sustento; eu ouvia-te e julgava-te o lobo e fugia pelo monte acima até à cimeira e dali gritava e era uma águia no estômago a bicar a fome de ti.

canto

É o canto dos círculos das colheitas, o canto do que acreditamos, que me passeia pelos ouvidos interiores; o canto dos peixes vermelhos e azuis no mar esverdeado; o do melro de manhã cedo antes do pão; o canto que nos torna uma flor única, um cisne negro em toda a extensão do símbolo, um lótus sem contorções, um enxame de pirilampos na êxtase da procura, uma nuvem lilás que se aproxima e se revela feita em mariposas gigantes que voam entre nós e nos tocam com o pó simples das suas asas.

mãos

as tuas mãos foram feitas para acompanhar os astros. são feitas da matéria dos tempos antigos: formaram-se a custo de rochas, ventos e feitiços. são feitas do cheiro da chuva, transparentes como o sal que se mistura aos elementos puros. vencem porque não lutam: imprimem. não tiram: são. sobem pelas tardes das cores até ao fôlego empenhado de um violoncelo. balançam nas tardes à varande e te descobrem limpo, próprio, contundente como um livro. as tuas mãos são a última das águas, por isso taças. são cálices para o descanso das verdades emergentes, caminho translúcido, líquido dúctil e quente, vinho. as tuas mãos são para ser bebidas, rápidas como um riso, rotundas como o cerne.

rédeas

a forma em que o teu corpo toma as rédeas, se expande e retoma em mim a tua sorte, onde te sou jardim e te me desfazes em sementes de papoila ou cravo; a forma em que te rego à tarde como uma ponte translúcida num dia de chuva e tu és a poça onde me espelho e reconheço do mesmo além de ti; a forma em que o pescoço teu é um baobab ou uma sequoia ou um carvalho onde aninham seres mitológicos, um canto à habitação primigénia, o invólucro de um vazio onde sou Alice, caio-te pelo dentro das vozes e és frasco que diz bebe-me. e bebo porque quero conhecer as tuas estâncias, os teus becos interiores, espelhos, enigmas e equações irresolutas; a forma em que te revelas lúcido como uma taça de cristal, talhado por mãos que tratam de prata e diamantes negros; a forma em que o poder das fontes te faz queda, vale e foz do verbo feito aquém; a forma em que és a língua do tao e lambuzas na corrente nossa para resgatar peixes cheios de palavras.

agosto

nas tardes de agosto, eu caminhava em direção ao que havias de ser. saltava-te pela montanha dentro e trazia-te uma onça perdida como um pintainho. soube ler-te os pés carregados, e compreendi que de caminho ao mar, tu escrevias pegadas para as ondas aprenderem a poesia. nunca trocamos prendas; o sol era alto e chegava para acalentar os corpos. eu era um entardecer de lilás para laranja doce, e tu eras nuvem e saltavas em altura sobre mim, amante.

praia efluvial

era a praia efluvial, o bico das ondas nos bicos dos seios e dos pássaros longos como dias sem pão. deste-me os anjos caídos todos, para eu os socorrer, de nós. juntamos areias movediças onde ficar presos à poesia. tu desmaiavas de sol e eu contava-te os cabelos. éramos, e os olhos dos outros eram um misto de tela e partitura, nós truncados como um epitáfio. dizíamos: lua cheia, e um pardal saltava da tua boca ao meu ninho de águia, porque éramos fortes, e os dias eram largos.

belo

és belo, e de tão belo entras-me pelo poro entalado. fruto que tira sede, alma minha à revelia do que sou, cravo bem temperado, chuva que me chove pelos ombros magros, neve a derreter pelos braços, falas-me pelos cotovelos da ria, não te cales, não te cales que a vida é um pano gasto e a tua voz é o nardo. deixa-me estar assim, ao teu colo, esquecida das palavras bravas, longe do abismo das pedras e as migalhas, segura, abrigada de ti, belo, e de tão belo, fogo.

não somos titãs

não somos titãs, fugimos de uma terra submersa pelos nossos próprios pecados; assim nos estendemos pelos continentes, como nuvens ou ventos, ou pó do deserto. mas também como praga de lagosta emergemos às praias, aos vales pelos corações feitos em calhaus rolados, e no nosso idioma de patas e antenas, dormimos num frenesim de branco e vermelho, engolindo borboletas no pescoço, plâncton por entre as coxas, algas nos ventres macios. e descemos.

dragão

eu vi o céu pelos teus olhos, uma noite. dentro de ti era escuro, e cheio de constelações e hemisférios virgens. eras habitado por escalas próprias, notas brancas, negras, perfumado em colcheias que te escoavam por entre os dentes de manhã. sentava-me ao teu lado e ao fim do dia, eu, era os poros teus. não tinha visto nada assim, tão constelado. eras Hércules atirando à cabeça do dragão. eras Perseu à procura de Pégaso. eras de outra galáxia, eras Andrómeda. de repente, eras o dragão a engolir Hércules, Perseu, Andrómeda e os poros da Lua que eu tinha ganho com o teu jeito. eras tu a engolir-te nos meus poros, que eram teus.

barqueiro

dividida nos canais por onde me escorres de vida atropelada, és o borbotão desaguado mãos adivinhadas, criadoras, leme do barco rabelo pelos canaviais que emergem na foz. apresentas-te como um cuidador de cavalos, silente e corajoso. não é pelo fogo que se vence o mundo, dizes. como deus ex machina sentas e defines o rumo, nada te contém nem te empurra, a não ser o vento e a água. sento atrás de ti e fecho os olhos. o barco a cortar a água, dos remos descaem pingas do teu corpo calado. sinto-te respirar. este barco é o último, o rio já é quase mar, e as aves passam por nós como se não fôssemos.

menos é mais

acordo e as palavras são o caminho de migalhas para regressar à casa térrea, ao quintal; arejo os lençóis e o cheiro dos teus sonhos emerge em palavras que saltam pela janela e se misturam com a poalha húmida que hoje envolve a paisagem: andorinhas. acordo e falta-me o cheiro da manteiga derretida ao unísono, o crepitar dos corpos unívocos na fome de ingravidez que nos une, a precisão da fugida ao mato do que somos dentro, os laços afastados do chão, as asas atadas ao tempo. acordo e volto a ti e sorrio porque os afazeres calmos são o princípio da vida, são o abaixo do nosso acima, e volta e meia mergulhamos na cama das palavras a partilhar sussurros de manteiga e cravo.

anisotropia

verbo, ponto anterior ao início do tudo, demiurgo dúctil como um bambu, precisão no ausente, vazio de onde nasce o movimento, mestre da matéria escura, reflexo dos corpos celestes, floco anisótropo, silêncio floral no ikebana, em tudo te apresentas e celebras, em tudo te tornas epifania, emerso dos cabelos escuros das sereias distraídas, vácuo no alimento, invisível protetor dos astros e dos sonhos, constelação secreta, mistério volátil como os cílios de uma deusa que, escondida, passa as tardes calmas debruçada no tear das línguas que não falas.

tu

sobra-me o corpo, os braços, os espaços. falta-me o fôlego para te seguir o lume forte, queimas-me a retina a ponto de caramelo, tu. deita-me água na fervura do sul, que os ossos, os músculos com que transito o mundo já não servem. tento uma espiral derviche para te atingir nessa verdade transdimensional onde os nossos corpos celestiais se fundam e eclodam em palavras ora macias ora contundentes como o mar dos orixás. tu, sou desfeita de cristais sagrados quando me falas. tu, abres-me sem limite até à entorse da emoção mais entalada. reconheço-me em ti, assumo-te, de assumir, de somar, de sumo, de sumaúma. tu, água benta, saras os poros azedos, entupidos por lembranças secas. tu, antídoto de cobra silenciosa, remédio de tempo em suspensão, tu.

aguador

aguador antigo, transportas a torrente da fonte; nela metes o braço até ao esterno para parir as verdades escondidas aos leigos. tu, as formas frondosas em que te manifestas. nunca dantes foram transitados os caminhos que o além do humano toma em ti, a tua mão desmesurada no derrame que te torna vale arvorado, cascata de nomes e rumos impossíveis, essa caminhada nas curvas da linguagem, nas falésias do olho nu onde debruças o teu canto.

arara

abeirada ao cheiro que deixa o teu pescoço torrado pelo sol das dunas, sigo os teus passos, farejo-te neste bosque de engenhos alucinados. não pares, não, que é a tua corrida por entre os cipós mecanizados que te faz mergulhar em mim, te torna mais belo ainda, mais próximo de uma escultura de ébano com vida própria, uma estação propícia à êxtase. paro e fecho os olhos, assim posso ver-te íntegro, dos olhos da arara que te canta sinto os teus pés húmidos a desbravar o caminho, já sou o bosque que te amorna, te adorna, entorna a magia dos espaços virgens sobre os teus cabelos trançados em missangas, não fujas, estou à tua volta, em ti, sou tu, na tua voz

território do ambíguo

celebrar o território do ambíguo como os cílios o fazem sem palavras. os anjos festejam a visão do aquém, esta escola cercada por caixilhos em jeito de músculos e ossos, a relatividade, a impressão quântica apreendida em palavras absorvidas pelos bicos dos olhos. quem tem asas não precisa de ter os pés na terra ou levantar o pó das estradas. assim foi sempre, os deuses garantiram. no entanto, talvez hoje, nós, queiramos inventar um alfabeto sem tempo nem espaço. e os anjos, feitas as contas do futuro nascido dos nossos nadas, não serão mais para aqui chamados.

mulher nua

uma mulher nua é uma declaração de paz assinada nas redondezas do corpo. uma mulher nua é um seguro contra a fraude, chega ao pé de nós e não há como negar os seus ombros, porque dela depende o ventre cheio que nos traz ao mundo. uma mulher nua e madura é uma oferenda de mornas à beira-mar que encanta as ondas porque as cores do mar lhe pertencem por natura. não toma de empréstimo os ventos, não precisa: o sol modula o homem que dela se aproxima, e assim tudo volta ao seu lugar enquanto as praias trocam areias de oceano a oceano.

take a reset

nua que nem virada do avesso, dormente, tocada pelos bicos leves da relva, envolvida no cheiro húmido da terra preta no jardim adiado, abrem-se as mãos e dedo a dedo o dorso toca o orvalho. o dia é outro, o mundo outro, amanhã ja foi e hoje é um dia sem passado, como se nada fosse, como aquela moça de benedetti a programar uma amnésia para caminhar pela vida sem mochila. take a rest, ou melhor: take a reset.

a importância da maré

perguntar às sombras pelos ecos do sol que já se pôs, eis o drama. no fundo, tudo depende do olhar. fartamo-nos de procurar no entulho dos desejos despejados mas nada sacia a vorágine da matéria escura de que somos feitos, insatisfeitos. nós, o sofrimento, a necessidade da porta aberta ao que se encontra além da massa de ossos e músculos que habitamos. a dor como lembrança da matéria, a arte como salto quântico. o sábio aceita o sentido e rema rio abaixo. conhece a importância da maré. tudo é igual sem ele ou com ele, e no entanto tudo muda a sua presença invisível.

continuidad de los para qués

convocarte
para que me sacies el hambre de los labios
abiertos para que te mire con ojos de pez
adiestrado para abrir su boca en melodía
callada para no importunar la sinfonía de tus manos
lentas para no quebrar la porcelana de mis sueños
pospuestos para ceder el paso a tu ánimo
áspero para que no te lancinen los envites del pasado
olvidado para que no te duelan los tobillos al desandar los tiempos
idos para dejar lugar a dudas gritos preguntas con espuelas
clavadas en el pozo de mi lengua
concebida única exclusivamente para
convocarte

urge

frisar os modos: belo no homem é a maneira como cresce, como urge, esse quê de caçador polido, a vida a agir em nome próprio através dos corpos, uma flor que cresce na direção dela folha a folha, um livro amado linha a linha. um sopro leve após um dia polvilhado de coisas simples, um riso de canela, uma leitura fresca, um copo simples. tudo o que já foi é renunciável quando os corpos dão as horas. tudo menos os limiares que assumem perfis míticos na hora de alimentar as ânsias mornas, demoradamente regadas por atos e palavras que confluem no cesto da roupa, na noite.

homem

o que encanta num homem é o rebento, a decisão com que abre um livro decidido e lentamente deita uma página sobre outra como se todas fossem filhas numa noite de trovoada. a decisão de esquecer o abrupto e festejar as incertezas que adubam os amores, caminhar sobre as horas como criança ao pé coxinho, brincalhão, atento ao chão que pisa. um livro sabe esperar seu turno na prateleira, a vida tem urgências e mistérios decifráveis a quatro mãos. homem que ama sabe que cada página tem seu lugar, que a noite tem respostas improváveis, que os olhos por vezes são vencidos pelos sonhos.

ela livro

livro para ser possuído. livro: livre, para nunca ser possuída, só procurada, diz ela do além das coxas, da fronteira dos lábios, o espaço limpo à volta, essa bola de sabão, leve, de leveza. e de levar. não, antes: deixe. deixe ela caminhar no silêncio, mulher é passagem, alta-o-fogo, meandro que evita o choque. mas ele... ele: olhos, mãos. início, força, sentido. o que não foi mas poderá, formulação da hipótese, gérmen, intuito, primeira direção de uma pupila que procura. caça. casa. calma, à tarde. evoluir para mão morna, dedo que já não vinca a página, mas saliva iniciática, verbo pronto a mergulhar nas águas dela, salto, envolvência, lançar o hálito até atingir a sereia e embalar o frémito submarino, tão frio, o fundo, tão escuro, o antes.

chocolates perdidos

mesquinho foi uma vez o olho que poisou no ombro da memória como um pássaro poisa no fio do telefone sem saber o que por ele passa: sonhos contados, despedidas prontas, correrias, nascenças, frutos, descrenças, risos desatados. mas foi uma vez. talvez duas. mulher é caixa de chocolates escondidos, luta pelo efémero, cheiro sem corpo. fazer crescer os chocolates perdidos, isso é mulher. livro para cheirar a novo, longe de quem vinca os cantos. é preciso lavar as mãos, limpar as sombras, acorrentar os humores. nada do corpo, apenas um jeito, qualquer coisa que passou e deixou o perfume das horas: laranjas, caminho, o trânsito, uma canção antiga que sabe a novo.

Cosmoagonia

Quem sabe se eram, tinham, sabiam.

Quem sabe ainda os deuses não tinham nascido para lhes dar nome, sempre com atraso, eles à espera, convocados para uma ceifa nos tempos em que ainda não havia cereais.

Quem sabe o que acontece aos primeiros que chegam, a vida ainda não era e quando é, é para se viver, talvez quando o tempo fosse inventado viessem outros para escrever, outros de mãos moles e ideias calejadas, revistas, tomadas da memória do que nunca foi escrito porque o tempo e o espaço não eram ainda possíveis nem necessários, quem sabe.

Quem sabe um dia já era tudo nascido e a mulher inventou-se para ser silêncio porque os gritos dos partos nunca foram belos.

Quem sabe depois ela disse que sim e queria dizer que não, ou não sabia ou queria era só dizer, porque dizer era estar, ser ou parecer, uma cópula de sintagmas que lhe devolvesse a nascença roubada, lhe levasse a dor condenada.

Quem sabe ela tinha sido antes uma coisa pousada por acaso, uma vontade vaga que de tanto anoitecer se tornou muda e de tão muda branca, e de tão branca lua ou luz de empréstimo, ou guia de escuridões que tudo dá no mesmo.

Quem sabe houve também uma outra coisa lançada de um passado eterno, uma noção de princípio que não foi, um sempre em frente inverso e infinito, um berço pronto para o embalo do relâmpago ao nascer.

Quem sabe não queria tornar-se ele mas que diabos estava na hora e os deuses com atraso como sempre, quem sabe daí a urgência, a decisão, o caminho aberto, o riso, e ainda a mão que rebenta dentre o nada e toca a pele branca, muda, lua.

Quem sabe por isso os deuses nunca mais chegavam e tiveram que inventar os nuncas e o sempre, criar o tempo e o sol porque era preciso comer qualquer coisa enquanto isso e trabalhar para comer e descansar para trabalhar, e o raio dos deuses que não apareciam, pouca vergonha.

Quem sabe foi preciso descansar e até morrer para deixar de esperar o que nunca tinha sido.

Quem sabe por isso a única cópula possível abandonou os sintagmas e brotou da necessidade e o que há-de ser de nós.

adeus

a fresta é o que foi e o que estava por ser. escoam as águas ainda, até o tempo sua nos interstícios das horas, nada que não caiba num cabaz para partir em direção ao futuro. também entre os dedos escorrem alguns rescaldos do vazio, roupas usadas, uma panela gasta em cozinhar água com sal. não soubeste ficar pelos contornos, quiseste o tudo, o âmago do fruto proibido, mas sem responder à pergunta do cão cérbero. cuidado, os deuses castigam duramente os ladrões de febres e silêncios. não perdoam a cobardia. nada vai te pertencer mais longe dos teus dedos, ou talvez então alguma palavra minha ainda ecoe um dia neles e se enfie entre os papéis velhos, ou nos teus joelhos e te faça acordar do pesadelo que escolheste.

hortelã

É assim o nosso jardim. As vestes servem para cobrir as flores nas horas de mais sol, enquanto nós nos amamos à sombra da mangueira. Por vezes aparecem para nos visitar pessoas amigas com boas intenções. Elas trazem coisas imprestáveis como cadeiras, pratos, candeeiros que ficam para ali deitados a ganhar ferrugem. Quando chegam, e quando se vão embora, as pessoas amigas beijam-nos, porque assim ajudam. Elas não sabem que à noite há os teus olhos e Sírio, há os nossos pés e mãos, há as vontades. Não sabem que de dia, caminhamos por entre as árvores e apreendemos coisas necessárias à vida do jardim, como o riso das folhas, o cheiro do pau de canela ou o verde da hortelã. É coisa séria, o verde da hortelã.

perdidos

Dentro de ti são as horas sem tempo. Quanto brio foi preciso para desbravar o Éden? Quantas Evas sentaram ao pé de Adão? Cada deus distribui-se pelos campo como bem entende, nós cochilamos entre as ervas o sono da palhinha, do escaravelho, da formiga que nos sobe pelos braços. Somos barco e não sabemos onde termina a proa e começa a popa, e nem somos chamados a saber, mas a gozar o sermos sem fronteira no contato do mar e suas criaturas silentes. Passo-me e repasso-me da cabeça aos pés meus e não sei em que ponto tu és eu e eu sou tu, a ilusão de voltar à fonte universal, o desejo, a esperança de voltar a um nós que esperou por séculos ou milénios, porque ambos andamos perdidos, e na forma deste amor sem tempo regressamos ao que fomos antes da maçã e o esquecimento.

senha

Dizem que há um paraíso onde as terras se tornam ausentes de nós para nos evocar o gozo da língua viva, um paraíso que te nasce nos pés descalços pela orla do silêncio onde em pé esperas, nas conchas das mãos-praia onde te aporto com cheiro a algas e sal das ossadas nossas gastas de tanto riso, um jardim onde crescem livres amores-imperfeitos como o nosso que acorda de manhã vontade de cinzel para se aparar arestas e liquens e tristezas. Dizem que há uma floresta mágica e só nós temos a senha, só nós sabemos da porta, só nós somos aceites pelos elementares das águas e as pedras.

dias

É assim que os dias se passam na nossa casa. Alguns deles, no barulho das panelas escondo o silêncio teu enquanto crias uma palavra nova. Hoje, por exemplo, fui abrir uma janela e lá tinhas afixado um beijo d'obra. Não que me incomode. A poesia tapa-me o sol dos olhos e assim posso sentir a palavra e o camélio do quintal. Não fosse a tua pegada, estaria agora a franzir os olhos e nem veria as camélias, a tarde, a poesia viva.